As pessoas sempre reclamam de não ter sapatos até que vêem um homem sem pés, e aí reclamam de não ter uma cadeira de rodas elétrica. Por que? O que as faz se transferir automaticamente de um sistema estúpido a outro, e por que o livre-arbítrio só é usado nos detalhes e não em questões mais amplas? Em vez de "onde devo trabalhar?", por que não "devo trabalhar?" Em vez de "quando devo construir uma familia?", por que não "devo construir uma familia?". Por que não trocamos de país subitamente, de modo que todos na França se mudem para a Etiópia, e todos na Etiópia se mudem para a Grã-Bretanha, e todos na Grã-Bretanha se mudem para o Caribe, e assim por diante, até que finalmente tenhamos compartilhado o mundo como deveríamos e nos despojado de nossa lealdade vergonhosa, egoísta, sanguinária e fanática ao solo? Por que o livre arbítrio é desperdiçado com uma criatura que tem escolhas infinitas, mas finge que são apenas uma ou duas?
As pessoas são como joelhos golpeados com minúsculos martelos de borracha. Nietzsche era um martelo. Schopenhauer era um martelo. Darwin era um martelo. Eu não quero ser um martelo, porque sei como os joelhos vão reagir. É chato saber. Eu sei porque sei que as pessoas ACREDITAM. As pessoas tem orgulho de suas crenças. Seu orgulho as entrega. É o orgulho da propriedade. Todas as visões místicas me parecem muito ruidosas. Todos os mistérios deveriam ser ignorados pois nós os vemos. Mas a maioria acredita no que vê, entende? Elas não enxergam um processo em andamento. Acontece quando as pessoas vêem a morte, e isso ocorre o tempo todo. Elas vêem a morte mas percebem a luz. Elas sentem a própria morte e dão a isso o nome de deus.
Isso também acontece comigo. Quando sinto lá no fundo que há um significado no mundo, ou deus, eu sei que na verdade é a morte. Mas como eu não quero ver a morte à luz do dia, a mente confabula e diz: escute, você não vai morrer, não se preocupe, você é especial, você tem significado, o mundo tem significado, você não sente? Eu continuo vendo a morte e também a sinto. E minha mente diz: não pense na morte lalalala você sempre vai ser bonito e especial e nunca vai morrer nuncanuncanuncanunca você nunca ouviu falar da alma imortal? Bom, você tem uma muito boa.
Eu digo talvez, e minha mente diz: olhe este pôr-do-sol incrível, essas montanhas incríveis, olhe esta árvore magnífica! De onde mais isso poderia ter vindo senão da mão de um deus que vai embalar para todo o sempre? Então eu começo a acreditar em pântanos profundos! Quem não acreditaria? É assim que começa. Mas eu duvido. E minha mente diz: não se preocupe. você não vai morrer. Sua essência não vai perecer, não a parte que vale a pena ser conservada. Uma vez todos nós vemos o mundo inteiro de nossas camas. Na minha vez eu o rejeitei. Entende? Todas as vozes vem de dentro. A energia nuclear é uma perda de tempo. Eles deveriam andar por aí canalizando a energia do inconsciente durante o ato de negar a morte. É durante esse processo ardente que a crença é produzida, e se as chamas são mesmo quentes elas produzem a CERTEZA - filha feia da crença. Sentir que você sabe, de todo o coração, quem fez o universo, quem o controla, quem responde por ele, etc. é, com efeito, desvincular-se dele.
Os chamados religiosos, os chamados espiritualistas, os grupos que rapidamente renunciam à tradição ocidental do "consumismo que apazigua a alma" e afirmam que conforto é morte creem que isso só se aplica às posses materiais. Mas se o conforte é morte, isso deveria se aplicar sobretudo à mãe de todos os confortos, a certeza da crença - muito mais aconchegante que um sofá de couro macio ou uma banheira de hidromassagem, e que certamente mata um espírito ativo mais depressa que o controle remoto de um portão elético. Mas é dificil resistir à ilusão da certeza, e por isso você precisa manter um olho no processo, para que, ao ter todas as visões místicas do mundo inteiro e escutar todas as vozes quase sussurradas, possa rejeitá-las logo de cara e resisitir a tentação de se sentir especial e acreditar na imortalidade, pois sabemos que é apenas uma obra da morte. Você entende? Deus é a bela propaganda feita nas chamas do Homem. E tudo bem amar a deus porque você aprecia a maestria de sua criação, mas não precisa acreditar em um personagem só porque ficou impressionado com o autor. A MORTE E O HOMEM, os coautores de DEUS, são os escritores mais prolíficos do planeta. Sua produção é prodigiosa. Juntos, o inconsciente do Homem e a Morte inevitável criaram jesus, buda, maomé, para citar apenas alguns. E estes são apenas os personagens. Eles criaram o céu, o inferno, o paraíso, o limbo e o purgatório. E estes sao só os cenários! E o que mais?
TUDO, possivelmente. Essa parceria bem sucedida criou tudo no mundo, com exceção do próprio mundo. Tudo o que existe exceto o que já estava aqui quando o encontramos. Entende? Você compreende o processo? Os humanos são únicos neste mundo porque, ao contrário de todos os outros animais, desenvolveram uma consciência tão avançada com um terrivel subproduto: são as únicas criaturas conscientes de sua própria mortalidade. Essa verdade é tão assustadora que desde muito cedo os humanos a enterram bem fundo em seu inconsciente. E isso acabou transformado as pessoas em máquinas de sangue quente, fábricas de carne e osso que produzem significado. O significado que elas criam é canalizado em seus projetos de imortalidade - seus filhos, seus deuses, seus trabalhos artísticos, seus negócios, suas nações - projetos que, acreditam, sobreviverão a eles.
E aqui está o problema: as pessoas sentem que precisam dessas crenças pra viver, mas são inconscientemente suicidas por causa delas! É por isso que quando uma pessoa sacrifica a própria vida por uma causa religiosa, ela escolheu morrer não por um deus, mas a serviço de um medo primitivo inconsciente. Portanto, é esse medo que faz com que ela morra da própria coisa de que tem medo. Você vê? A ironia de seus projetos de imortalidade é que, embora tenham sido projetados pelo inconsciente para enganar a pessoas, dando a elas a idéia de que são seres excepcionais e prometendo-lhes vida eterna, o modo como elas se preocupam com seus projetos de imortalidade é exatamente aquilo que as mata. A negação da morte empurra as pessoas para o túmulo.
Só isso.
Achei interessante a conjectura da relação entre a morte e a crença na imortalidade, mas falhei em entender a metáfora dos martelos...
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