quarta-feira, 26 de março de 2014

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Com todas as suas possessões materiais amontoadas numa trouxe que carrega amarrada em um bambu apoiado em seu ombro, o meu pequeno Louco viaja, não sabe ele para onde. Mas pouco importa. O que realmente interessa é simplesmente ir, e se maravilhar com o que há de melhor no mundo. Repleto de visões, questionamentos e inquietudes, meu Louco é o arquétipo da possibilidade e do potencial. Há mais do que mudança nele; há renovação, movimento, e a energia bruta de um novo começo; de volta ao início, ele finalmente pode se decidir a experimentar o que a vida realmente tem a oferecer. Longe de estar frustrado ou triste por ter de começar de novo, ele começa a ser preenchido por um sentimento genuíno de libertação conforme o seu coração fica mais leve e ele se sente mais refrescado, diante da possibilidade de uma segunda chance. Ele começou sem ter muita certeza de onde queria ir, mas com seus pequenos passinhos lentos de tartaruga, o meu Louco está enfim crescendo e aprendendo a resolver o que é melhor pra si mesmo. Pelo visto, ele tem confiança suficiente em mim para me dar a função de guiá-lo a um bom caminho, função que aceito de bom grado, por me preocupar com ele e querer vê-lo feliz. A cada passo que ele der, minha função vai ser a de estar no passo seguinte, guiando-o e prestando atenção no que ele tem a dizer sobre sua jornada. Por agora, eu sou só um cachorrinho, cuidando pra que sua inspiração tenha pelo menos uma faísca de algo que pode representar um ponto para se começar e não corra o risco de cair no precipício, cego por ilusões de grandeza. Mas existe uma diferença entre saber o caminho e percorrê-lo, e embora eu possa oferecer a porta, meu andarilho terá de atravessá-la sozinho, e por seu próprio mérito, e eu estarei lá para parabenizá-lo porque tenho confiança absoluta de que ele consegue.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Meh (1,2,3,4,5,6,7,8,9) [10]

Capítulo 1: Memórias

Por toda parte. Escuro, viscoso, quase cor de vinho, escorrendo lentamente pela rua asfaltada até entrar num bueiro e desaparecer. Os gritos. As pessoas correndo. O motorista desesperado, saindo do carro com as mãos na cabeça e gritando. Ela apareceu do nada. Não deu tempo, ele dizia, numa tentativa de convencer a si mesmo do que havia acontecido. As nuvens negras que pairavam sobre a cidade o dia inteiro finalmente desabaram em prantos, em uma espécie de consolo à dor dos que observavam, horrorizados, o corpo estirado no chão como uma boneca de pano em farrapos. Ainda assim, a chuva era incapaz de lavar a substância pegajosa, presa à rua como cola. Como se ela desejasse continuar ali. Como se desejasse manter tudo ali, da forma como havia ocorrido. Tudo que era incapaz de ser esquecido. Incapaz de ser superado. Ainda era possível sentir o cheiro de perfume que ela exalava por onde passava. Ainda era possível vê-la sorrindo e soprando beijos. Ainda era possível ver o carro que vinha rápido. Rápido demais. Julia...
                -Olá!
                -Hãn? Eu olhei pra cima e respondi, como se acordando de um sonho.
                -Eu disse olá! Você é novo por aqui, não é? Disse a ressonante voz feminina, tirando-me de meus pensamentos. A garota usava chinelos brancas. Uma tornozeleira com a figura de uma baleia estava amarrada em seu devido lugar. Um short branco e uma leve camisa amarela com mangas era o que ela vestia. Sorria de orelha a orelha, e seus olhos amendoados olhavam animados e curiosos, como quem admira um brinquedo novo. Sua franja e seu longo rabo-de-cavalo castanho claro escapavam por debaixo do boné.
                -S-sim, é meu primeiro ano.
                -É, dá pra perceber. Mas você sabe que não vai conseguir fazer muitos amigos se ficar deitado num banco olhando pro céu, né?
                -Desculpe...
                -Ei, relaxa, não precisa ficar triste. E sabe por quê? Porque eu vou ser sua primeira amiga aqui! Meu nome é Clara, e você é o...?
                -Tiago.
                -Então, Tiago, sobre o que você tanto pensava enquanto olhava pro céu?
                -Ah, nada de mais. Só me lembrando de uma história antiga...

Capítulo 2: O Coelho Branco

O sol já estava se pondo quando saí. Centenas de adolescentes iam de encontro aos pais que os esperavam com a porta do carro já aberta. Alguns outros se reuniam e iam a pé. Era um dos poucos que caminhava sozinho. Mas pouco importava. Ficar sozinho já não era mais um problema. Peguei o caminho em direção à praia. A distância era um tanto mais longa, mas a jornada um tanto mais prazerosa. Andando pela rua, observava o contraste entre as paisagens. À direita, um labirinto de prédios erguia-se em direção ao infinito, manchados pela cor triste do cinza monótono. Gente era vista nas janelas. Gente alheia à qualquer um dos significados reais de qualquer coisa. Gente com o rosto transbordando de ignorância e superficialidade. Simplesmente Gente. Daquelas que vemos todos os dias na rua passando pela nossa frente. É Gente. Não chegam nem perto de serem pessoas.
À esquerda, a praia. O sol se punha atrás do mar, tingindo o céu ao redor de vermelho. A água, calma e sem ondas, dedicava-se unicamente à refletir a luz do sol, duplicando sua beleza. Na areia, alguns poucos ainda se davam conta da verdadeira maravilha que é um pôr-do-sol, enquanto outros iam embora sem olhar para trás. A brisa do mar balançava calmamente as copas dos coqueiros, que lançavam suas sombras em meio à calçada. O caminho era tranquilo. Até que num súbito olhar, tão rápida quanto um lance de vista, ela passou pela minha frente. Um choque percorreu todo o meu corpo em uma fração de segundo. Congelei. Nada pude fazer enquanto ela andava com passos leves e rápidos diante de mim, até dobrar a esquina. Não podia ser... Julia?
Despertando de repente, comecei a correr em sua direção o mais rápido que pude, e virei na mesma rua. Onde estaria? Olhei para os lados, aflito, com o coração disparando. Não podia perdê-la de vista. Foi quando, de longe, a vi novamente. Ela seguia reto pela longa rua descuidada, onde latas de lixo se encontravam caídas na frente dos prédios. Não havia tempo a perder. Em um surto de frenesi, comecei a correr, e senti meus sentidos lentamente abandonarem-me um por um. Não sei exatamente por quanto tempo corri. A cada passo que dava, parecia-me que o caminho se distorcia e extendia como se tentando ficar mais longo. Só sei que quando parei, num estalo, estava logo atrás dela. No entanto, o universo parecia  ter mudado completamente ao meu redor. Já estava de noite, e a rua estava agora deserta. A escuridão parecia comprimir o meu corpo em todas as direções, provocando uma sensação claustrofóbica. Uma ligeira falta de ar. O frio, até então despercebido por conta da correria, começava a dar sinais de presença, gelando meu nariz e fazendo fumaça sair de minha boca ofegante à cada respiração. Ela ainda se encontrava à minha frente, andando, calma e alheia a tudo. No momento em que dei o primeiro passo, no entanto, me bateu, como um turbilhão repentino em um mar sem ondas. O que estou fazendo aqui? Perseguindo pela rua uma garota há muito tempo morta? E mesmo que por uma brincadeira de mau gosto do destino estivesse  viva, de que adiantaria? O que faria? O que diria? Ela se lembraria? Diria que estava bem? Que sentia saudades, mas que havia fingido a própria morte? Mas... E se não for ela? Teria corrido durante horas à toa? Teria tido um falso lampejo de esperança, agora prestes a ser esmagado como um inseto? Como se nunca houvesse existido? Como se fosse poeira a ser levada pelo vento? ...É inútil. É uma perda de qualquer jeito. E depois de instantes inacabáveis estando ali, parado, virei-me de costas e comecei a andar. Não poderia haver mais nada pra mim ali.

Capítulo 3:(Des)Concerto

-Julia?
Foi quando ela se virou, e finalmente pude observá-la. Seus lábios eram vermelhos como uma maçã. Seus cabelos, lisos e cor de ébano, tinham as pontas pintadas de loiro e escorriam até os ombros. No seu pescoço, um colar com um detalhado pingente de borboleta. Usava um colete aberto com três botões dourados do lado esquerdo. Por baixo do colete, uma blusa branca de manga. Simples, e sem estampas. Um short jeans pelo qual atravessava um cinto deixava à mostra suas coxas bonitas. Um par de botas pretas de cano alto com curtos saltos grossos cobriam suas pernas e a deixavam da mesma altura que eu. No entanto, o que mais chamava a atenção eram seus olhos claros. Prateados, de tão claros. Afiados. Penetrantes. Encará-los transmitia uma sensação esquisita. Era sentir como se numa pontada de gelo tivessem atravessado pela minha cabeça e estivessem tateando por toda parte dentro do meu crânio. A pupila quase que pulsava no meio da imensidão prateada. Como se palpitasse. Como se estivesse viva.
-Não... você não é... Constatei, obviamente transtornado.
-Eu pareço com a sua namorada? Respondeu a garota, rindo sarcasticamente e me observando de cima a baixo.
-Ex-namorada...
-Não me diga. O que houve, bonitão? Não se comportou?
-Não foi isso. Houve um acidente...
Incapaz de continuar a observar aquele rosto e tentando conter a dor que ameaçava crescer em meu peito, desviei o olhar.
-Mas é impressionante - disse eu, me animando novamente. - Você poderia ser a gêmea dela! O seu rosto, a sua voz... Só o seu cabelo e os seus olhos são diferentes! Enquanto eu falava, ela meramente se encostou na parede de um prédio e dedicou-se a observar as longas unhas pintadas de vermelho-vivo.
-O meu nome - disse ela, virando novamente na minha direção - é Juliana. Eu não pareço algum tipo de... fantasma, pareço? Eu sou de verdade. Se tem dúvidas, veja se sua mão atravessa o meu corpo... Dizendo isso, com as duas mãos colocou a minha em seu colo. Fechei os olhos, num sentimento de medo e de esperança. Sob minha palma, senti claramente uma superfície quente.
-V-você realmente não é a Julia... Ainda fui capaz de dizer, enquanto tirava a mão rapidamente.
-Eu já disse, - ela continou, inalterada pela minha reação brusca, - meu nome é Juliana. Mas... -ela demorou-se na fala, e começou a andar ao meu redor lentamente. Cada gesto, cada passo que dava era leve, devagar, etéreo, como se flutuasse logo acima do chão.
-Eu pareço com a Julia, não é? Você a amava... não é? Ou... -nesse momento, parada diante de mim, ela colocou sua mão em meu ombro e aproximou-se de meu pescoço, fazendo-me ter um arrepio. Com a minha mente em erupção, não pude me mover. Ela então sussurrou em meu ouvido, quase que imperceptivelmente. - Talvez você a odiasse...
-Não seja ridícula! Falei severamente, desvencilhando-me dela e olhando em seus olhos.
-Não fique com raiva, eu estava só brincando, hehe...
-Tsc. Esqueça...
-O que isso quer dizer? - Perguntou, como se eu a houvesse ofendido de maneira irreparável. - Veio falar comigo só porque eu pareço com a sua ex namorada? Agora vai simplesmente esquecer que me viu, só porque eu não estou morta!? Sua voz havia se alterado para o que parecia ser uma mistura de angústia e raiva.
-...O que você propõe?
-Pôr-do-sol na praia, bonitão. Quando quiser me ver, é só aparecer lá. - Como que por manha de criança, sua voz havia voltado ao normal.
-Então tudo bem... E nos despedimos. Fiquei observando enquanto ela andava pela rua cada vez mais distante, até desaparecer noite adentro.

Capítulo 4: Portas trancadas

A chave desanimada rodava lentamente na fechadura da grande porta de madeira, antes de ser guardada novamente no bolso do jeans junto do chaveiro de Cancun. Andava vagarosamente pelo corredor escuro, tateando à procura de algo que me guiasse os passos. Após esbarrar no interruptor, todas as luzes da enorme sala se acenderam, numa saudação à minha chegada. O som dos passos pesados e arrastados batendo contra a madeira polida ecoava pela grande mansão, antes de serem substituidos por sons mais baixos, como os de quem anda por cima de um tapete de seda. Recebendo-me, uma enorme escada enfeitada por uma passadeira de veludo negro seguia em direção aos andares superiores. Ignorei-a e entrei por uma das inúmeras portas que se projetavam naquela sala.
Encontrei as luzes já acesas e a grande mesa de jantar já posta. Era um móvel luxuoso e ocupava uma grande parte da sala. Sentei-me à cabeceira numa cadeira majestosa, onde o assento era também de veludo negro. Fileira após fileira de castiçais de bronze estendiam-se de uma ponta à outra da mesa em intervalos calculadamente iguais. Bandejas após bandejas de prata onde depositavam-se os mais variados pratos ocupavam grande parte do espaço disponível na toalha branca. Talheres, tigelas, xícaras e bules de porcelana dividiam a atenção com a multidão de garrafas de bebidas importadas de marcas das quais nunca sequer ouvira falar. Reluzentes taças de cristal refletiam a luz do esplêndido lustre no teto. Diretamente à minha frente e atrás da cadeira da cabeceira oposta, mais dois castiçais descansavam na prateleira acima do buraco da lareira. No meio deles, um quadro chamava novamente a minha atenção, embora já o tivesse visto inúmeras vezes no passado. Apenas se representavam a cabeça e os ombros das duas figuras que se distinguiam do fundo preto. Um homem velho encarava por detrás de óculos de meia-lua com um olhar severo e impassível. O tempo não havia tido piedade com seu rosto. Usava um terno de tom escuro. Sua mão esquerda por onde corriam saltadas veias azuis estava apoiada no ombro de uma mulher. Ela usava um longo vestido preto e um colar de pérolas que dava muitas voltas ao redor de seu colo e pescoço. Seus longos e ondulados cabelos ruivos escorriam até os seios. Seu semblante era apático e inexpressivo, e seus olhos heterocromáticos verde-esmeralda e azul piscina não transpareciam qualquer sombra de emoção. A moldura oval era dourada e ricamente adornada. Desviei o olhar para a comida em meu prato e fitei-a durante alguns instantes, antes de dar um longo suspiro e começar a comer. O único som que permanecia era o tique-taque do relógio de pêndulo, repetido e ritmado. Incessante. Terminei o jantar e levantei-me. Observei por alguns momentos os dois outros pratos que ainda encontravam-se na mesa, intactos como os haviam posto. Suspirei novamente, e saí pela porta que entrei.
Subi pela escada e entrei pelas portas duplas logo em frente. As luzes acenderam-se sozinhas. A decoração era rica, porém vetusta. Nas paredes estavam pendurados diversos troféus, misturados com quadros de estilo gótico e sombrio. A cama era ocupada por um mar de almofadas e travesseiros diferentes, combinando com a colcha vermelho-vinho. Uma enorme janela por onde era possível se ver a entrada da mansão estava tapada por longas cortinas de veludo. Caminhei pelo carpete cinza até o banheiro. Os tênis, as meias, a camisa, o casaco e o jeans agora se amontoavam no chão de pedra frio. Parei um instante e me aproximei para observar melhor a estranha figura que olhava em minha direção. Era um garoto de uns 15 anos de idade. A franja loira e arrepiada escondia um pedaço da testa e virava levemente para a direita, acompanhando todo o cabelo, antes de chegar aos olhos verdes. Olhos que pareciam alheios à própria beleza da mesma forma que evitavam contato com os outros. Ombros largos e um corpo magro não muito forte. Tiago, murmurei, antes de suspirar novamente. Desviei o rosto do espelho, e encarei o objeto responsável por proporcionar horas de indecisão durante todas as noites nos últimos meses. Era como se minutos de prazer estonteante pudessem ser proporcionados por um único movimento. A visão sedutora e atrativa do objeto hipnotizava e empurrava à força imagens de céu, quadro, nuvens, carros, sangue e olhos prateados para dentro de meus pensamentos. Balancei a cabeça rapidamente, me livrando de um devaneio. Hoje não. Apaguei as luzes e caminhei até a cama, abandonando a lâmina em cima da pia.

Capítulo 5: Estrada pra lugar nenhum

Outro passo. Outro dia. Mais uma desconsiderada página era virada no velho livro que caía aos pedaços. Só um dedo ferido e sangrando de tanto bater na mesma tecla, esperando que algum dia ela funcionasse. Esperando que alguém ouvisse. Outro passo. Outro dia. Só a sombra de uma cadeira, se deslocando de um lado para o outro repetidamente, sem ser movida. Só se moveria no dia que fosse desmontada e destruída, eles diziam. Outro passo. Outro dia. No qual já não era possível sentir o calor do fogo. No qual todas aquelas comidas refinadas tinham todas o mesmo gosto vazio de nada. No qual todos aqueles cortes auto-inflingidos não provocavam qualquer sensação de dor ou remorso. Dias nos quais estar sob o sol ou sob o gelo não fazia diferença. Dias nos quais o sofrimento alheio não mais comovia. Onde o tédio já não surpreendia. Onde ficar só na vontade já não doía. Onde era só mais um porco num chiqueiro, comendo e dormindo, esperando o dia em que finalmente seria sacrificado. Nem mesmo promessas ainda atraíam. Só uma longa estrada de terra, rachada pela alarmante ausência de água, seguia indefinidamente além do horizonte, sem sinais de haver um dia existido vida ali. Sem toca para oferecer refúgio, sem lago para oferecer alívio. Sem árvore para oferecer abrigo. Só o dia, a estrada, eu, e o abismo. Aquele que se fez presente desde o início da caminhada, cuja profundidade debochava de mim. Outro passo, onde os pés descalços se feriam e sangravam na briga com o barro e com as pedras pontiagudas do chão. Outro dia, onde era só mais um dia, comandado pela inércia do estado de espírito. Comandado pela falta de comando. Outro dia onde só havia o dia, eu, a estrada, e o abismo. Dias onde não havia dia. Outro dia onde só havia eu, a estrada, e o abismo. Dias onde não haviam caminhos. Outro dia onde só havia eu, e o abismo. Outro dia onde só havia eu, e o abismo. Eu, e o abismo. Eu, e o abismo. Eu, e o abismo.
O abismo...
Fim

- Er, isso ficou muito... profundo, Tiago. Mas a proposta era uma redação sobre o seu cotidiano!
- ...Desculpe


Capítulo 6: O castelo de cartas

...Por quê isso?

Mais uma vez, o sinal estridente havia tocado, anunciando o término das aulas. Arrumei calmamente meu material enquanto a multidão irritante de pessoas saía esbaforada pela porta da sala de aula. Levantei-me, e me dirigi à saída. Fiz um caminho diferente. Entrei na rua pela direita e segui, passando direto pela rua que ia em direção à praia e evitando-a. Andava pela calçada no ritmo de sempre. O ritmo de um ser humano que agora feito morto, vivia. Um ser humano cansado da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam todos os dias para amanhecer cada vez mais pobres. Ia absorto em meus pensamentos, observando a paisagem ao meu redor. Andava com as mãos no bolso e a cabeça abaixada. O vento batia frio, balançando as folhas das copas das árvores que enfeitavam aquela rua, fazendo um som de ondas batendo contra uma costa. As nuvens cinzentas cobriam lenta e silenciosamente cada recanto do céu, anunciando a chuva que os jornais da manhã haviam previsto. Por algum motivo, aquela paisagem fria e mórbida provocava-me uma espécie de sensação de pertencimento, por mais estranho que isso parecesse. Como se ao mesmo tempo em que era cruel e rígida, era também um dos únicos lugares em que poderia mergulhar em minha mente sem ser incomodado. Foi quando de súbito, tão rápido quanto um choque passando pelo meu corpo, tomei consciência da minha própria situação desesperadora. Havia um bar na calçada na qual estava andando e, nele, a causa de minha aflição. Pessoas que reconheci de minha sala de aula estavam sentados em uma mesa próxima à saída. Em especial, notei um garoto que havia tentado "conversar" comigo anteriormente. Ele era terrivelmente inconveniente, mas já era tarde para mudar de calçada. Por um instante, amaldiçoeei o máximo que pude minha capacidade de me desligar do mundo ao meu redor. Por outro, desejei com todas as forças que ninguém me reconhecesse.
Obviamente, não era para ser.
-Ei!
O garoto se levantava da mesa e corria em minha direção.
-Ei! E aí, cara?
-...Olá
-Escuta, Tiago. É Tiago, não é? Escuta, você não quer sentar com a gente?
Dei uma rápida olhada na mesa para a qual ele apontava e respondi, quase que instantâneamente.
-Er...Não, obrigado.
Visivelmente decepcionado, o garoto murmurou algo antes de caminhar de volta para seu barulhento grupo de amigos. Que baboseira, pensei, enquanto voltava-me à direção na qual estava andando, agradecido por essa situação ter terminado sem maiores problemas. Porém, por algum motivo ou impulso violento vindo de algum lugar desconhecido de meu interior, olhei para trás. E os vi.
Estavam todos rindo e se divertindo, brindando a algo não-identificável. Observei se formarem os sorrisos dessas pessoas que via todos os dias, embora não soubesse absolutamente nada sobre elas. Quem seria eu, então, para julgá-las de desinteressantes? A cena agora passava diante de meus olhos como em câmera lenta. Estava aqui, fora dessa baboseira toda. E a única coisa em que fui capaz de pensar foi em como essa baboseira deve ser tão aconchegante e acolhedora... Experimentei então uma sensação de profundo pesar, que veio misturada à lembranças agridoces de tempos um dia melhores. Não há infelicidade maior do que relembrar, sozinho, a época em que juntos fomos felizes. Pensei então em o que havia se tornado minha vida, um eterno acúmulo de idas, partidas e ausências. Mas o que, afinal, eu poderia fazer por mim? Estava exausto de abraçar o vazio. Escravo do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas lutas, de inventar uma outra e nova vida. Por vezes havia tentado, e nesses momentos, enchia-me de idéias e de bons propósitos. Mas quando me dava por mim, me via quieto, sentado em meu canto, olhando o tempo passar. Será que isso era mesmo vida? Será que só isso bastava? O que acontecera com todos aqueles sonhos, tão certos de uma vida melhor? Havia tecido uma rede deles, e agora via um por um dos fios desmanchar e destecer, até tudo se tornar um grande vazio. O vazio que restou de quem um dia foi feliz. Acho que, no final das contas, minha existência se resume a isso. Pensamentos e lembranças da época em que vivia. É tudo que eu sempre tive...
Foi quando me ocorreu.
-A praia!
Não contive o grito e saí disparado. Corria freneticamente como uma máquina. O vento gélido se chocava contra meu rosto e meu nariz, e suor pingava de meu corpo a cada minuto que corria. Minha respiração estava ofegante e me faltava ar nos pulmões. Tive a impressão de que teria um ataque do coração, tamanha a velocidade com que ele batia. Uma leve sensação de déjà vu passou pela minha mente, mas foi embora tão depressa quanto chegou. Meus pés pareciam não tocar realmente no chão, e a cada passo que dava, meu medo de me desequilibrar ou tropeçar tornava-se mais aterrorizante. Me deslocava desconsiderando qualquer obstáculo em minha frente e empurrando todos ao meu redor. Minha velocidade aumentava perigosamente, e eu não tinha mais certeza se seria capaz de parar, quando de repente, ouvi uma voz feminina berrar desesperada.
-CUIDADO!
Olhei para o lado e só o que consegui ver foram duas luzes brancas vindo desenfreadas em minha direção.
Escuridão...


Capítulo 7: Paraíso sombrio

Sentia-me flutuando. Minha cabeça se encontrava apoiada em algo macio e confortável. Um familiar e sutil perfume feminino de cheiro extremamente agradável pairava no ar. Eu conhecia esse cheiro, assim como essa sensação de bem-estar. Só poderia ser causada por uma pessoa.
-Ah... Julia?
Pensei por alguns instantes em abrir os olhos, mas notei que me demandaria um esforço que não me parecia necessário naquele momento. Sentia-me diferente por algum motivo. Mais leve, livre das preocupações. Livre das dores. Pela primeira vez em muito tempo, me sentia genuinamente... bem. Será que eu... morri? É isto, então. Morto por um motivo qualquer numa rua qualquer. Morto antes de minha vida ter sequer começado. Morto antes que meu coração pudesse um dia conhecer a tranquilidade.
No entanto...
Ainda sim, havia algo esquisito. Algo ainda doía. Uma dor estranha e latente persistia, e parecia me arrastar com força para algum lugar estranho e assustador. Era uma dor... na minha coluna? Mas se minha coluna doía, isso quer dizer que eu...

Percebi-me deitado em algo duro, e minha coluna doía extraordinariamente. Tive a impressão de que algo pesado havia passado por cima de mim e quebrado todos os meus ossos. Quando, enfim, abri os olhos, me deparei com duas esferas prateadas que me observavam minuciosamente.
-Não é a Julia, seu bobo. É a Juliana...

Eu... ainda estou vivo...

Notei então que estava deitado em uma cama, e ela, sentada em um pequeno sofá ao lado. Tentei me levantar, mas uma pontada de dor fez com que eu cessasse meu movimento, mordendo os lábios e fechando os olhos com força.
-Vai com calma, Tiago. Afinal, você acaba de ser atropelado... Disse ela, dando uma leve risada sarcástica
-A-Atropelado, você diz? Perguntei, atônito.
-Foi o que eu disse. -com um movimento da mão, ela jogou seus longos cabelos negros para trás- Pelo visto, você saiu correndo para atravessar a rua e não conseguiu ver que um carro enorme vinha na sua direção...
Olhei ao redor e percebi que me encontrava em um quarto de hospital. Estava um pouco escuro, mas pelo que consegui enxergar, as paredes e o teto eram pintados de branco, assim como uma porta que dava para um banheiro. O pequeno sofá onde ela havia se sentado era de um tom de azul desbotado, e um armário simples ocupava uma parte de uma das paredes. Presumi que era ali onde haviam guardado minhas roupas. Achei o quarto terrivelmente frio, e notei que fumaça saía de minha boca. Olhei para a janela e vi que estava aberta, exibindo a noite sombria que,  enquanto eu dormia, havia deposto a claridade. Pedi gentilmente que minha companhia fechasse a janela, visto que estava vestido apenas com uma camisola e o frio já estava me fazendo perder a sensibilidade nas extremidades do corpo. Dando de ombros como se o frio não a incomodasse, ela se levantou e caminhou devagar e despreocupada em direção à janela, fazendo ecoar pela sala o barulho de suas botas de salto alto batendo contra o chão.  Quando ela voltou ao seu lugar, pude ouvir a crescente sinfonia que os pingos de chuva começavam a fazer ao se chocar na janela de vidro. Ela prosseguiu:
-Eu estava andando pela rua da praia quando vi uma multidão reunida e resolvi perguntar a alguém o que houve. Me disseram que tinha sido um atropelamento, e quando me aproximei, vi que era você quem estava ali, estirado no chão. Quando a ambulância chegou, eu disse que era sua namorada e que estava muito preocupada com você, e me deixaram vir junto...
-Minha namorada!? Por que você disse isso? Perguntei, interrompendo-a revoltado, enquanto me levantava desajeitadamente da cama. Ofendida, ela levantou-se também e respondeu:
-Ora, como você pretendia que eu me apresentasse? Eu teria tido problemas pra entrar aqui se fosse de outra forma! Além do mais, ninguém teria vindo te acompanhar se eu não o tivesse feito. Você teria acordado aqui sozinho, sem ninguém pra te fazer companhia, como acontece todos os dias! É isso mesmo que você queria, Tiago? Não tem noção do favor que eu te fiz!?
A sua voz havia mudado, como naquela outra vez. E novamente estava me provocando arrepios. Aturdido pela reação dela, gaguejei:
-...M-Mas você não é minha namorada!
-Ah é, tem razão. Perdão por isso. Sua namorada está morta.
Dizendo isso, me encarou desafiadoramente com seus afiados e penetrantes olhos prateados, de modo que não pude deixar de reparar. Por deus, o rosto delas é idêntico... Me sentindo culpado e um tanto arrependido, virei-me para deitar novamente na cama, quando senti uma dor lancinante em minhas costas e soltei um gemido.
-Ah, Tiago! Aqui, deixa eu te ajudar...
Com cuidado, ela prontamente se aproximou e delicadamente me ajudou a recostar na cama. A voz também... 
Perguntei, então, numa tentativa de mudar o assunto, pois já me sentia um tanto cansado:
-...Quanto tempo você acha que eu vou ter que ficar aqui?
-Os médicos disseram que são só alguns dias. Mas não importa. -nesse momento, ela esticou sua mão para alcançar a minha, me provocando uma ligeira sensação de intimidade invadida. - Eu estou aqui pra você, Tiago. O tempo que você precisar de mim...
 Tomado pelo sono, acabei adormecendo.


Capítulo 8:

Diário de Hospital

9 de Junho

Não sabia há quanto tempo estava consciente, mas sabia que havia acordado. Tinha essa certeza pois a única coisa que pude identificar no momento era minha sensação incrivelmente desagradável de que não havia dormido o bastante. Desejei, por alguns instantes, que permanecesse em um estado de semi-consciência, onde não poderia sentir mais nada além do fato de não estar morto. Porém, contra a minha vontade, meus sentidos foram gradualmente retornando a mim, um por um. Primeiro, o olfato me fez sentir o cheiro enojante de hospital, caracterizado pelo desinfetante e pelo odor de limpeza artificial. Em segundo, o tato, quando senti cada articulação do meu corpo doer ao meu menor movimento. Depois disso me veio o paladar, trazendo a sensação amarga dos remédios que haviam me enfiado garganta abaixo. Com a audição, pude ouvir a incessante chuva e o vento batendo na janela. Por fim, abri os olhos, e fui capaz de enxergar as rachaduras do teto branco que iam das extremidades até o centro, onde uma lâmpada presa por uma dupla de fios expostos desafiava a lei da gravidade. Rolando na cama de um lado pro outro, frustrado, olhei pela janela e constatei que não iria ser capaz de ver nada, pois uma neblina densa havia se instalado. Coberto de dores e de desconforto, só conseguia pensar no quanto isso tudo é injusto...

10 de Junho

O médico veio hoje. Ele me fez engolir uma pílula estranha que ardeu cada centímetro de minha garganta, e disse que se ela não aliviasse a minha dor, ele teria de recorrer a medicamentos mais fortes. Eu não quero medicamentos mais fortes. A pílula que tomei já me deixou com enjôos e tonteiras durante o dia inteiro. Além do mais, se eu só me sinto melhor quando estou drogado, quem sou eu de verdade? Me recuso a medicalizar meu sofrimento, mas não consigo deixar de pensar que as angústias da vida real são terrivelmente fortes, a ponto de nos vermos obrigados a recorrer a outras realidades que nos auxiliem na enfrentamento da nossa. Sei que devo estar soando patético e fraco, mas nem todo mundo consegue ser tão forte. Será que é tão condenável escolher tentar fugir ao invés de lutar? Algumas pessoas provavelmente diriam que sim, mas nenhum deles teve de passar pelo que passei. Sinto que isto é um pensamento tão egoísta, mas por mais que tente, não consigo evitar o modo como eu me sinto. É muito difícil continuar vivendo desse jeito...

11 de Junho

Ah, Julia... Por mais que eu saiba que é loucura, no meu íntimo eu ainda tenho a esperança de que alguma hora você vai entrar por aquela porta balançando seus lindos cabelos escuros, vai vir correndo me abraçar e me dizer o quanto estava preocupada comigo e o quanto sentiu minha falta. Que vai reabrir a janela do meu coração, trancada por tanto tempo, e novamente fazer crescer flores onde um dia foi um jardim. Por isso, eu observo esperançosamente a porta o dia inteiro. Mas ela jamais se abre. Então eu continuo esperando, preso no casulo da minha dor e solidão. Sentindo-me fraco e desamparado, aguardando eternamente alguém que já sei que não vai voltar. Eu queria tanto poder mudar o modo como as coisas acabaram, Julia... Mas não consigo. Por isso fico aqui, pintando na cabeça um mosaico das nossas lembranças. Da nossa temporada em Cancun. Lembranças de tempos um dia melhores, tempos que não retornam mais. Os anos maravilhosos que tive ao seu lado... Mesmo que a nossa vida juntos tenha terminado desse jeito, eu não trocaria o tempo que passei com você por nada nesse mundo. Se na época que te conheci, alguém do futuro aparecesse para me contar todas as felicidades que eu iria viver com você e me dissesse que o custo delas seria o que estou passando agora, eu não teria dúvidas de que faria tudo de novo. Não posso pedir que você se lembre de mim onde quer que esteja agora, mas não consigo suportar a idéia de você me esquecer. Você me deu tanta coisa, e eu não fui capaz de retribuir nada...
Julia...
Você me fez feliz...

Capítulo 9: Realidade


Chacoalhar brusco. Ainda tonto e com a cabeça latejando por ter sido desperto tão abruptamente, percebi que a cama na qual estava deitado era empurrada por um longo corredor mal-iluminado. Lâmpadas velhas de brilho pálido eram as únicas fontes de luz, e já davam sinais de que provavelmente não durariam muito tempo. A frágil claridade não era suficiente para permitir que meus olhos enxergassem perfeitamente os arredores. Só conseguia distinguir a silhueta do médico que me acompanhava. Sentia-me diferente, porém. A velocidade com a qual ele me levava somada à atípica escuridão estavam me deixando incomodado. Também não ouvi os barulhos característicos de um ambiente hospitalar, e o médico não proferia uma palavra sequer. Fiquei perturbado. As trevas e o silêncio são ambientes prósperos para a aglomeração dos horrores que habitam tanto o mundo quanto a mente. Mas não deixei que tais pensamentos povoassem meu cérebro por muito tempo. Estava num hospital, afinal, e se não deveria me sentir seguro aqui, não me sentiria em lugar algum.
Ainda sim, havia algo errado. Os estranhos solavancos da cama me impediam de deslizar para a inconsciência. Além disso, surgira uma sensação não familiar em meu interior que me mantinha desperto. Era ela também a responsável por jogar adrenalina em minha corrente sanguínea e fazer meu coração bombear sangue ligeiramente mais depressa, colocando-me em um estado de alerta. Parecia-me como se fosse algum instinto de sobrevivência, me preparando para um combate iminente. Mas o perigo que essa sensação estava prevendo... seria ele imaginário...? Aproveitei a percepção aguçada provocada pela tensão para tentar ouvir ou ver alguma coisa. Qualquer coisa que provasse que a ameaça estava apenas em minha cabeça. Mantive os olhos fechados para não denunciar minha consciência, mas o que ouvi não me deixou mais calmo. Ruídos estridentes de metal se arrastando contra metal, somados a barulhos de correntes e portas batendo. Ventiladores enormes girando lentamente, e outros estrondos altos. Até que o som horrendo de um grito terrível e agonizante ecoou por todo o hospital até vibrar nos meus tímpanos e gelar a minha espinha, como o último sopro oriundo das entranhas dos que estão para morrer. A angústia parasita em meu interior foi se alastrando depressa, se infiltrando e enraizando como uma doença virulenta, se alimentando do meu desespero. Tentei me mover, mas meus braços e pernas estavam dormentes e pareciam pesar toneladas. Abri meus olhos, mas instantaneamente desejei não tê-lo feito. A visão mais nítida me permitiu enxergar a imundície do teto e das paredes, que demonstravam sinais pesados de descuido e abandono. As lâmpadas eram ainda mais velhas do que pensei, e suas luzes tremeluzentes, prestes a se extinguir, davam ao ambiente um aspecto ainda mais ameaçador. Enquanto o médico me empurrava, passávamos por inúmeras fileiras de portas de metal de aparência velha e ferruginosa, e através de uma pequena abertura no metal, pude distinguir os médicos cometendo os mais vis e desumanos atos contra os internos. Sufocamentos, fogueiras humanas, desmembramentos e outras torturas inimagináveis passavam diante de meus olhos. Tentei gritar, mas a língua não se movia ao meu comando, e não fui capaz de emitir nenhum mísero som. Macas e camas manchadas de sangue se espalhavam pelo corredor, acompanhados por embrulhos estranhos, alguns se movendo freneticamente, tentando desesperadamente se libertar. Senti-me extremamente enojado e mal pude conter a forte ânsia de vômito. O ar em meus pulmões esvaziara por completo, e meu coração batia violento e descontrolado, tentando bombear oxigênio para minhas células. Minha boca e garganta estavam ressequidas e causavam-me dor ao engolir saliva, enquanto o suor escorria encharcando minhas roupas e cama. Todo o corredor parecia corrompido por sujeira, sangue e ferrugem, mas não era só isso. Era como se a própria realidade houvesse sido contaminada.
Subitamente, o médico que me empurrava parou, virou-se e começou a andar para longe. Ouvi seus sapatos se chocarem contra o chão gradeado por um tempo, até o eco ser engolido completamente pela escuridão. À deriva naquele ambiente hostil e macabro, não soube dizer se meu terror havia crescido ou apaziguado. Senti, porém, uma presença nefasta se aproximando cada vez mais de mim, muito mais ameaçadora do que qualquer médico. A mesma presença que senti me espreitando das sombras e me mantendo desperto minutos atrás. Sabia que tinha de me mover. Depressa. O torpor e a inércia eram agora vencidos pelo medo e pela adrenalina, que me impulsionavam a fugir. Em um surto de força, levantei-me da cama e me pus a correr. Cada passo feria meus pés, que sangravam em contato com a grade de metal do chão, enquanto vapor quente vindo de tubos no teto aumentava ainda mais o calor. Parecia um pesadelo terrível, em que se corre desesperadamente sem conseguir sair do lugar. Mas não podia parar de correr. A presença... estava perto demais. Vi ao final do corredor uma porta e, numa mistura de pânico e determinação, fui em sua direção o mais rápido que pude. Era minha escapatória. A cabeça latejava e as pernas mal sustentavam meu corpo, mas cheguei, triunfante, ao meu destino. No momento em que a abri, porém, fui atacado por um ruído que pareceu perfurar meu crânio e me incapacitou completamente. Conforme desfalecia e perdia a consciência, só consegui pensar que o ruído se assemelhava muito a uma buzina de carro...

Abri os olhos. Olhei ao redor, aflito, procurando sinais de que a realidade havia revertido ao normal. O quarto estava exatamente do jeito que estivera durante os últimos dias, exceto por um único detalhe. Havia um vaso de flores na cabeceira ao lado da cama. Intrigado por sua origem, perguntei à enfermeira prestes e sair do quarto quem o havia deixado.
-As flores? Foi uma garota bonita quem deixou. Passou aqui mais cedo, mas você estava dormindo.
-Uma garota? Ela disse seu nome, por acaso?
Parou por alguns instantes, pensativa, e respondeu
-Acho que sim, mas não consigo me lembrar. Disse que passaria aqui outro dia.
Agradeci, e ela saiu.
Uma...garota?

                                            Capítulo 10: Clara


O que se pode fazer quando cada centímetro do seu corpo dói? Quando se sente reprimido pelos seus limites físicos? Para mim, a imaginação sempre foi um meio de escapar dos confinamentos impostos pelo meu frágil corpo. A criatividade me proporcionava refúgio nos momentos em que sentia-me atado à dura realidade; criava um outro mundo na minha cabeça onde podia ser livre, longe de toda aquela tristeza. Meus pensamentos e sonhos sempre me foram mais atraentes que a vida cotidiana, e não consigo compreender o que pode haver de tão bom nela para que aqueles ao meu redor insistam em me arrastar dolorosamente para o mundo deles. Ainda assim, meu desejo de enterrar-me em meus pensamentos não é mais tão reconfortante e passou a me angustiar, pois no fundo, não consigo abandonar a certeza de que o mundo deveria ter algo a mais, de que a vida deveria ser algo além do que é. A realidade não pode se limitar a isso... pode?
A única época em que senti que as coisas valiam realmente a pena foi quando estive com Julia. Ela fazia com que eu me sentisse elétrico e ansioso, como se a vida fosse uma oportunidade emocionante e tivéssemos medo, não de não achar nada que nos interessasse, mas de não conseguir aproveitar tudo que havia de interessante ao nosso redor. Ela fazia com que eu tivesse vontade de viver a realidade, porque finalmente havia se tornado melhor que meus sonhos, e me convencera da noção ferrenha de que a vida feliz não era um simples mito, e mesmo que fosse, de que era melhor morrer tentando atingir esse objetivo inalcançável a me afundar na resignação estática de que o inferno são os outros. E não lembro de ter deixado de agradecê-la por isso nem um momento sequer. Meu passado sem ela era desolado e persistente demais para que eu achasse banal o milagre do seu companheirismo...
E então ela se foi, e junto dela, minhas esperanças. A chuva que começou naquele dia, logo depois do acidente, continua no meu coração até hoje. Quem agora iria me ajudar a ver o quão bela a vida poderia ser? O que ou quem mais eu poderia vir a desejar com tanto afinco? Me restaram tão poucos motivos pra continuar tentando... só um mundo de lembranças mil vezes mais encantadoras do que toda essa realidade. Nenhum sentimento pode se comparar ao triste e mudo lamento de um coração partido.
Subitamente, minhas reflexões foram interrompidas por batidas na porta. Instintivamente, fechei os olhos e me deitei como quem dorme, mas ninguém entrou no quarto e quando a terceira ou quarta tentativa vibrou nos meus tímpanos, não tive escolha a não ser gritar para que a pessoa entrasse, antes que o ruído incomodasse mais alguém. A porta se abriu e somente o rosto feminino de minha visitante brotou no portal. Ela espiava como quem averiguava se o território era seguro e, presumivelmente satisfeita com o que havia visto, entrou por completo e fechou a porta. A garota me deu bom dia e sorriu conforme se aproximava de meu leito, mas o modo como me fitava parecia ligeiramente apreensivo. Descartando a hipótese de que uma total desconhecida estaria preocupada com o meu estado, comecei a achar que meu rosto estava sujo em algum lugar e comecei a tentar a limpá-lo disfarçadamente. Obviamente, não era para ser.
-Ahm... O que você tá fazendo?

...Eu sou tão óbvio assim?

-Er, nada de mais. Ela parou de pé, ao lado de minha cama, e depois de alguns instantes, começou a olhar ao redor, como se procurando algo sobre o que falar. Nunca tive muita paciência para quem acha que deve procurar alguma besteira para dizer simplesmente para que não haja silêncio. Não costumo achar que estou dando um uso produtivo ao meu tempo simplesmente por preenchê-lo com conversa jogada fora, e ela me parecia o tipo de pessoa que jamais entenderia os motivos que levam alguém a assistir um filme que não tenha um final feliz, ou a comprar uma tela que não seja bonita. Mesmo provavelmente percebendo que eu não a olhava de um jeito muito convidativo a conversas, ela continuava a sorrir, e isso me pareceu uma atitude no mínimo tola. Desnecessário dizer que não gostei muito dela de cara.
-Fique à vontade, por favor. Dizendo isso, indiquei com o dedo o sofá azul-desbotado
-Ah, obrigada!
A identidade dela permanecia um mistério e eu não havia tido uma boa impressão, mas ela me pareceu suficientemente respeitosa em relação a meu espaço, então não havia motivos para não ser educado. Ela se sentou, mas a apreensão no olhar permanecia e, depois de alguns instantes, decidiu deixar mais claro a que veio.
-Como está se sentindo?
Ela não havia se dado ao trabalho de se apresentar, então julguei que provavelmente já a 'conhecia' de algum outro lugar. Enquanto respondia, comecei a revirar meus pensamentos em busca do provável ambiente.
-Não é um dos meus melhores dias
-É, eu imagino... que chato ir pro hospital justo na sexta-feira, né? Deve ter arruinado seus planos pro final de semana.
-Não tem problema. Não é como se ele estivesse exatamente lotado
Silêncio. Já podia ver que essa conversa não daria em muita coisa, e se ela for inteligente o suficiente, vai perceber a mesma coisa. O silêncio progrediu por alguns minutos, até que não mais que de repente, ela declarou em alto e bom som:
-Ahm, com licença - e se levantou, caminhou até a janela, abriu totalmente as cortinas outrora fechadas, tirou o vaso de flores da cabeceira e o colocou no peitoril da janela, agora iluminado pela luz do dia - Assim elas ficam debaixo do sol, completou. E pôs-se a observar sua obra de decoração como quem admira um trabalho bem-feito. Esse gesto me intrigou, mas outra coisa me parecia mais importante.
-Como você sabe que meu acidente foi na sexta?
-Ah, sabe como são essas coisas né, tá todo mundo comentando lá no colégio.
O colégio! É ela a garota que se apresentou pra mim no primeiro dia!
-A propósito - disse ela, virando-se para mim novamente - gostou das flores? São girassóis e lírios da floricultura onde eu trabalho. Achei que poderia alegrar o ambiente.
A delicadeza e a simplicidade do gesto me provocaram então uma profunda e súbita onda de empatia pela menina. Ela havia se dado ao trabalho de dedicar dois dias diferentes do seu tempo para me visitar e me trazer flores, quando eu não havia julgado importante nem mesmo lembrar-me de seu nome. O olhar de preocupação que ela me lançava no início da nossa conversa de repente me pareceu inegavelmente genuíno, assim como sua consideração pela minha situação atual. Me senti emocionado e um pouco arrependido por dentro. Com que direito eu julgara-a tão mal minutos atrás?
-S-sim, as flores realmente... alegram o ambiente. Muito obrigado.
-Imagina, não foi nada!
Agradada pela minha resposta, ela deu um sorriso que tornou toda sua fisionomia mais leve e voltou a se sentar, claramente mais à vontade. Apesar do ambiente claramente menos desconfortável, permanecemos durante mais alguns minutos naquele silêncio familiar, no qual ambas as partes estão interessadas em começar uma conversa, mas receosas a respeito da direção certa que ela deve tomar. Ela havia sido gentil comigo, então decidi me esforçar um pouco para manter as coisas fluindo.
-Então... você trabalha numa floricultura, é?
-Sim sim, mas é só meio período. Ela fica bem perto do colégio, aliás. Você podia dar uma passada lá um dia desses, se estiver sem nada pra fazer depois da aula.
Ela realmente sorri bastante, pensei eu.
-É claro, vamos ter que esperar você melhorar, antes. Já tem previsão para ser liberado?
-De acordo com os médicos, aparentemente o meu estado requer mais alguns dias de "hospitalização supervisionada".
-E há quanto tempo te disseram isso?
-Bem... já faz alguns dias.
-Você está preocupado?
Por um momento, pensei em dizer coisas que já passavam pela minha cabeça há algum tempo. Que fazia pouca ou nenhuma diferença estar hospitalizado ou não, pois meus dias seriam igualmente monótonos e cinzas, ou que em todo caso, a dor física seria passageira. Mas ainda comovido pela atenção e cuidado da menina, não quis assustá-la com morbidez-realista desnecessária. Ao invés disso, disse em meio a risos e em tom de gozação, que com a dor que estava sentindo, piorar de vez seria quase um alívio. Ela deu uma risada, convencida de que eu brincava.
-É bom ver que a "hospitalização supervisionada" não prejudicou seu bom humor!
...Bom humor? Já ouvi dizerem que sou muitas coisas, mas confesso que bem-humorado é a primeira vez.
-Aposto que você e meu namorado seriam amigos, ela prosseguiu.
-Namorado?
-É, ele estuda com a gente. Não me admira que você não o tenha notado, ele é meio tímido e não gosta de grupos grandes.
-E por isso acha que seríamos amigos? Perguntei, com uma sobrancelha arqueada
-Na verdade, é porque ele também tem um senso de humor irônico, meio parecido com o seu.
Mal me conhece e já faz observações sobre meu senso de humor irônico? Essa garota é realmente incomum...
Fitamos um ao outro por algum tempo, até que ela olhou em seu relógio de pulso e se levantou do sofá em um pulo. Não consegui distinguir o que ela disse depois, um emaranhado de declarações sobre o quanto atrasada estava, sobre sua própria falta de atenção e pedidos de desculpas por ter de sair tão de repente. Antes que ela atravessasse a porta do corredor, porém, lembrei-me de perguntar:
-Ei, ahm, com tudo que aconteceu, eu acabei... esquecendo seu nome. Desculpe.
-Ah, relaxa com isso. É Clara, ela respondeu, antes de dar seu último sorriso e sair apressada do quarto.

...Clara, é?

Doce

Isso vai ser mais uma manifestação de qualquer coisa que eu esteja sentindo nesse momento que minha cabeça vai reorganizar depois; realidade se distorcendo, começa a enxergar uma distinção entre o que a coisa é e como ela é e o que é ela sendo. O mundo ao redor parece começar a se desprender, se desfazer, como se os fios de tecido que sustentavam o véu da realidade não fossem mais tão inflexíveis.Acho que as palavras importantes são fluidez e mistura. E sendo assim, pode ser tão boa quanto ruim. Ao mesmo tempo em que é bom sentir o peso do mundo de repente mais leve, começa a crescer uma ansiedade, como um soco embrulhado no peito do estômago, uma necessidade de ter algo tangível, necessidade de se ter algo palpável no qual se agarrar. Mistura. Como se você estivesse em um lugar suspenso, flutuando em líquido, e foi como eu disse pro Arthur, "amigo, você nunca vai conseguir ver o que eu estou vendo". Pra quem vê, é complicado ter de se desligar pra tentar explicar pra quem não vê. Você se enche de inspirações, idéias e bons propósitos e não sabe o que faz primeiro. Começa um, depois se lembra que deveria estar fazendo o outro, e o que sobra são amontoados de inspirações inacabadas, uma porção de quase-obras primas, um emaranhado do que poderia significar a realização de suas aspirações materiais se você tivesse se dado ao trabalho de racionalizá-las. A grande coisa do artista é essa, é o ponto de comunicação entre a viagem e o mundo real, ele não precisa de substâncias pra enxergar essas coisas que ninguém consegue, mas assim como ele tem momentos de inspiração e de euforia, ele sabe dosar com sanidade e racionalidade. Uma palavra pra aquela obsessão por repetição responsável por manter as coisas em ordem. A mente está tão desfocada que-

Você estaria melhor lembrando-se das coisas, ou esquecendo-as?

Se fosse só a vibe, tava de boa. O problema é quando você começa a comparar com coisas preocupantes que você já viu acontecendo a outras pessoas, coisas que você já viu em filmes, e começa a indagar se tem algo de errado com você. O problema é a noção de que você deveria estar fazendo alguma outra coisa naquele momento. Como se fosse algo te dizendo dentro de você que você não deveria estar fazendo aquilo. Se você puder afastar esse tipo de pensamento, numa boa.
Se não...