segunda-feira, 8 de outubro de 2018

E quando nada mais houver para tirarem, você vai sentir a dor de perda uma vez mais.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Minha mãe e eu

Era domingo, às 15h do dia do meu aniversário de 21 anos. Minha mãe, meu amor e eu sentados os três à mesa enquanto tomava meu café da manhã e bebia um chá de casca de cebola pra me recuperar da ressaca do dia anterior. Em algum momento durante a conversa, minha mãe faz-me um carinho no braço e com os olhos meio marejados diz "me lembro quando fui te ter!"
Ela sorria iluminada enquanto contava das três amigas que a visitaram, saíram para beber e voltaram fazendo algazarra no corredor do hospital durante a madrugada, e de como ganhei um mapa astral e uma fotografia - batida nesse dia por um "fotógrafo do nascimento" - que ela gostou tanto que comprou, apesar de criticar a comercialização desse momento.
Imaginei-me então pequenino e aninhado em seus braços, minhas mãozinhas débeis se mexendo para agarrar o ar e a expressão no rosto dela quando me segurou pela primeira vez. Me peguei pensando na vida, e me peguei pensando na morte. Pensei no meu amigo-irmão, agora padrinho do filho de amigos, e imaginei esse como um futuro próximo para a minha vida e a dos meus semelhantes; regozijando em comemoração à vida e enterrando os parentes mais idosos. Fiquei ali naquela contemplação esquisita, de estar me antecipando ao nascimento e à morte com a sensação de que não estaria preparado para nenhum dos dois quando viessem.
Agora, com minha mãe sentindo diminuir uma parte de sua incrível energia e os irmãos que vieram antes há muito em outros caminhos, sou eu quem testemunho o passar de seus dias, e decido contar essa história para prestar uma homenagem. Muitos desses eventos aconteceram quando eu era pequeno demais ou não estava lá para presenciá-los, mas eu sempre pude exercitar o dom da Escuta e ao longo dos anos tornei-me confidente desses relatos, ouvindo o ressoar nos corações dos outros. Hoje, mais velho, tornei isso meu ofício, como fez minha mãe antes de mim e em algum grau minha avó antes dela.
A verdade da história, no entanto, assim como na minha profissão, provavelmente está em algum lugar entre os muitos relatos que se conta sobre as coisas, mas eu, o caçula, trago essa verdade. 

Carla sentia o amor de sua vida escorrendo feito areia entre seus dedos, e soube que não havia nada a ser feito: o pai dos seus três filhos no mundo e do filho em seu ventre anunciava estar apaixonado por outra pessoa. Em estranhos e atemporais instantes, tudo pareceu onírico, e uma amálgama de imagens fluiu, transportando-a para a época em que o conheceu na residência do hospital e os dois empurravam um carro enguiçado na madrugada adentro. Ela podia se ver claramente, como uma espectadora, abrindo a porta e deixando sua companhia por alguns segundos estupefato, a boca semi aberta em formato de "o". Saíra imediatamente; jamais lhe ocorrera não ir ela mesma empurrar um carro e um passageiro pelas ruas. "Você é louca", dissera ele, antes da imagem se dissolver lentamente até ceder seu lugar a outra.
Em uma região fria e montanhosa, o casal trilhava seu terceiro dia em direção à cidade histórica de Machu Pichu. Portando um mapa desenhado à mão, Carla sentia raiva de si; no dia anterior, seu desejo de se manter asseada levou-a a se banhar em um rio gélido, e o que começou com uma pequena irritação na garganta eventualmente acabou por levar sua voz. Ao enfim terminar da caminhada, encontraram o portão da cidade - um grande portão de ferro - fechado, e decidiram com a ajuda de um habitante local passar pelo desfiladeiro e pular o portão, sob risco iminente de cair penhasco abaixo. Carla riu de nervoso. Quem em sã consciência faria uma coisa dessas?
Eu faria, pensou, e ele comigo. Vendo novamente o homem à sua frente, teve a sensação incômoda de um embrulho na barriga, e soube que algo não estava certo. Não era isso que havia planejado para sua vida. O que havia acontecido com todos os seus planos?
- Você quer que eu fique aqui até que ele nasça e cresça um pouco?
Carla estremeceu. Pensou na estrita escola católica para meninas que frequentou durante a infância e adolescência. A escola era dirigida por padres, embora houvessem também ali freiras responsáveis por parte da educação. Uma delas, Irmã Agnes, lhe era particularmente querida, e um dia pegou-lhe aos risinhos com as amigas no intervalo enquanto observavam - do alto de uma árvore no pátio - jovens rapazes a caminhar pela rua. A freira pediu que descessem e, ao se ajoelhar, olhou fundo nos olhos de cada uma. Acreditando que ralharia com ela, Carla sentiu a garganta fechar, mas Irmã Agnes apenas sorriu. Durante o resto do intervalo, falou sobre sexo e sobre uso de preservativos, respondendo a todo tipo de perguntas que os três pares de olhos curiosos lhe faziam. Já de pé, a Irmã olhou novamente para as três e pediu que as jovens não dividissem o conteúdo dessa conversa com os padres, antes de rodopiar suas vestes e sair.
Pensou, ainda, em sua mãe, que não muito tempo atrás se formara em uma turma em que havia, além dela, apenas uma outra mulher. Decorrente dessa graduação, a senhora recentemente passara a lecionar Psicologia em uma importante universidade, e anos antes confidenciara à filha que essa decisão foi a contragosto do marido: quando o assunto vinha à tona, o homem tornava-se casmurro, resmungando que "mulher dele não precisa estudar nem trabalhar". Carla sentiu um aperto no peito e as mãos ficarem frias ao se lembrar dessas histórias, e em quanto tempo demorou para que as entendesse como o que eram.
Preciso ser forte.
- Se não é por mim sua paixão, não more mais aqui. Pode ir.