domingo, 31 de dezembro de 2017

Meh [14]

Capítulo 14: Dias e dias

Existir do jeito que eu tenho existido envolve dias bons e dias ruins. Às vezes fico pensando em tudo que carrego há muito tempo e isso torna um dia ruim. Às vezes uma conversa boa faz um dia bom, às vezes uma coisa qualquer empurra o dia pra algum dos dois lados. Tem dias em que acordo me sentindo bem ou mal sem motivo aparente, e posso ficar o resto do dia sem conseguir definir o que me deixou de um jeito ou de outro.
Hoje, por exemplo, eu só queria rastejar para algum buraco escuro e morrer. Passei pela minha lâmina de barbear no banheiro e imaginei como seria cortar meus pulsos na vertical, colocar a lâmina ensanguentada de volta na bancada e observar os desenhos vermelhos que o sangue faria no meu braço, a frequência com que pingaria no chão, a ardência onde a lâmina beijaria. Conseguiria ver as gotas manchando o chão e sentir minha consciência se esvaindo, a vista escurecendo, eu tentando me apoiar na parede conforme minhas pernas bamboleavam até desmaiar em algum canto qualquer e morrer numa poça do meu sangue. Imaginei se alguém descobriria meu corpo, quem seria e em quanto tempo, ou qual seria a reação da pessoa. 
Foi quando uma voz na minha cabeça me disse que era triste e mórbido pensar nessas coisas, e "como sua mãe ia ficar?". Esse pensamento me fez chorar, ao passo que perguntei à voz "por que você não só me deixa morrer?". Então fui para o chuveiro, onde não ia conseguir saber se ainda estava chorando, sentei no chão e deixei a água fumegante cair pelas minhas costas e o vapor embaçar os vidros até que meu corpo anestesiasse a sensação me deixando dormente, uma espécie de torpor corporal. Fiquei alguns minutos debaixo da água com as luzes apagadas, só a mim mesmo para me fazer companhia, só a mim o fardo de me compreender e lidar comigo, um estrangeiro dentro da minha própria casa. Meio enrolado na toalha, limpei o vapor do espelho e estranhei a figura que olhava de volta para mim, achei-a esquisita e irreconhecível, como se não fosse realmente eu, mas um dublê vivendo em um mundo paralelo e desconhecido onde a vida era outra.
Deitado na cama e enrolado no cobertor, me sentia confortável e aconchegado. Aqui eu não preciso fazer esforço ou fingir estar feliz, ninguém me incomoda e eu não incomodo ninguém. É quase como morrer. Suponho que oito horas de morte tenham que ser o suficiente por hoje. Um dia de cada vez, pensei.

É que eu fico pensando como seria, sabe. Nessas horas, sempre penso como seria se esse ou aquele momento não tivesse acontecido, fico revivendo os eventos na minha cabeça tentando descobrir quando tudo começou a dar errado e invento novos desfechos que acabam em vidas que eu nunca vou viver. Em nenhuma dessas a Julia vai embora.

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Inter (ditado)

Não gosto de conversar com você porque nada do que eu faço e falo faz diferença quando você já está determinado a ficar puto comigo de qualquer jeito.
Não gosto de conversar com você porque no meio da conversa você faz comentários irônicos de desaprovação no meio da minha fala e é impossível progredir em qualquer assunto porque o que eu acabei de falar já virou uma questão a se debater.
Não gosto de conversar com você porque você não respeita minha vontade ou disponibilidade pra ter ou não as conversas, e acha que pode comentar qualquer coisa irônica sobre como eu não me importo quando eu literalmente não tenho tempo ou condições pra conversar. Eu não tenho que me justificar pra você.
Não gosto de conversar com você porque você me enfia goela abaixo que "como sempre" eu tenho dificuldade de ver que eu tô errado quando é exatamente isso que eu pensei e continuo a pensar de você em vários momentos.
Não gosto de conversar com você porque você lê mil sub entendidos e mil entrelinhas e, além de responder à conversa baseado na sua interpretação, toma decisões como se essas coisas fossem necessariamente verdade.
Não gosto de conversar com você porque você traz conclusões absolutas de "isso é assim" ou "isso não é assim" e eu me pergunto por que me dar ao trabalho de conversar quando tudo está concluído desde o início.
Não gosto de conversar com você porque mesmo quando eu me disponho a ouvir e acolher o que você tem a dizer, me propondo a fazer mudanças pras próximas vezes, tudo que você me responde é um "é".
Na verdade não é que eu não goste; pra mim é impossível.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Foi

Foi como ser escolhido por último no time do colégio; como não receber nenhum voto pra representante ou orador da turma. Foi marcar um encontro e receber um bolo, como escrever durante a madrugada. Foi não ter ninguém interessado nas letras de música do meu status, foi não me perguntarem se estava tudo bem. Foi não trocar presentes no natal e sentar-me ao ar livre para esperar que o céu ficasse da cor do infinito. Foi me apoiar com uma bebida em alguma pilastra no canto de um salão de festa. Foi voltar de viagem e já saber de antemão que não havia ninguém esperando por mim na estação. Foi como fazer aniversário e não receber nenhum parabéns, ou ser hospitalizado e não receber visitas. Foi nunca querer perder o contato e vê-lo se esvair entre os dedos. Como ouvir que meu maior sonho era uma grande tolice, e como gritar sem ter ninguém pra ouvir. Foi como contemplar a vida sem vivê-la, e estar de fora querendo pertencer. Foi como tirar um dia de folga da humanidade e não ter para quem voltar, ou como estar perdido e não ter ninguém te procurando. Foi como um domingo chuvoso, só que todos os dias. Foi como acordar de noite com um pesadelo e ficar chorando enquanto me perguntava por que mamãe não abria sua porta para mim.
Foi uma solidão e um vazio que as palavras não deram conta.