quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Por um desejo

Estava frio, e meu pescoço doía. Acordei com minha cabeça pendendo para fora de meu encosto, e mais tarde raciocinei que era esse o motivo de meu desconforto. Ajeitei-me então, mas meu pescoço continuava a reclamar. Encontrava-me sentada em algo macio. Tentei abrir os olhos, mas eles arderam com a claridade e começaram a lacrimejar, forçando-me a fechá-los. Esperei um pouco e os abri aos poucos. Vi apenas um grande borrão roxo desbotado. Conforme minha vista se acostumava, o borrão foi gradualmente tomando forma, e entendi que se tratava do teto. Olhei para frente, e me deparei com uma penteadeira de madeira escura e envelhecida. Uma garota coberta por uma névoa branca sobrenatural, sentada numa grande poltrona vinho me encarava fixamente. Uma névoa branca? Ainda me sentia um pouco tonta, e fechei os olhos com força, para garantir que meus sentidos não estavam me pregando uma peça. Para meu alívio, a névoa havia desaparecido. A garota não. Senti, então, um grande conforto em saber que mais alguém estava ali comigo, pois não gostava de ficar sozinha. Seus cabelos eram longos, lisos e negros. Ela usava botas escuras de salto e tinha suas pernas cruzadas. Usava um uniforme de estudante: uma saia xadrez vermelho e preta cobrindo suas belas coxas, enquanto uma camisa preta de mangas longas deixava à mostra apenas sua mão de bonitos dedos e longas unhas feitas. Ela fitava-me. Exceto pelos movimentos gerados por sua respiração, não se mexia. No entanto, suas feições transmitiam-me a sensação de que estava igualmente surpresa em me ver. Ela não vai falar nada? Por um tempo indeterminado que me pareceram horas, observei-a, na esperança de que dissesse ou fizesse algo que botasse fim àquele silêncio envolvente. Nada. Martelava-me sem parar na cabeça o temor do momento em que ela se cansaria de esperar e saíria antes que eu pudesse dizer algo, deixando-me sozinha naquele quarto assustador e não familiar. Isso não poderia acontecer. Concentrei-me então em mover meu braço. Se pudesse fazer isso, mostrar que estava ali, mostrar que não estava dormindo, talvez ela não fosse embora. E talvez, só talvez, dissesse algo, e me fizesse companhia. Juntei todas as minhas forças, e fui capaz de levantar meu braço direito que repousava na grande poltrona. Debochando, a garota à minha frente realizou precisamente o mesmo movimento, mas com o braço esquerdo. O braço esquerdo...? Merda. Não... Estava sozinha. Não sei ao certo se foi uma sensação criada pela minha mente assustada ou simplesmente o destino zombando de mim, mas a temperatura do quarto baixou instantaneamente. Eu sentia medo. Tentei me levantar sem sucesso. Uma sensação de pânico foi gradualmente se formando e tomando conta de mim, me fazendo ter a certeza de que o pior a se fazer naquele momento seria ficar parada. Era como se o frio fosse capaz de me dominar por completo e me impedir de me levantar de novo. Não, não era o frio. Sabia que não era, senti aquilo desde que acordei no quarto. Havia algo ali. Uma presença. Me observando, escondida nas sombras. Lentamente rastejando pelo chão de madeira, e subindo a poltrona. Não conseguia me mover. Olhei desesperada para o lado e por um instante tive certeza de que mãos feitas de sombras subiam pelo meu braço devagar, até chegarem ao meu pescoço e lentamente me sufocarem. Comecei então a fazer um esforço descomunal para vencer a inércia de meu corpo. Suava, e fumaça saía de minha boca à cada respiração. Engolia em seco, e um grito de pavor prendia-se no fundo de minha garganta. Tinha de me levantar. E rápido. No entanto... Os pensamentos foram se acalmando conforme minhas forças e meu oxigênio restantes eram sugados para fora de mim. Sentia-me sendo engolida devagar pelas sombras. Deveria mesmo tentar lutar e viver? Não seria muito mais simples desistir e ficar aqui, onde poderia definhar e morrer? Eu devo mesmo tentar fugir? Não é como se eu tivesse exatamente motivos pra continuar vivendo, mas... Eu tenho medo. Eu tenho medo da dor, e tenho muito medo da morte. Eu não quero ficar aqui. Eu não quero ficar sozinha. Eu quero encontrar alguém... Mas será que ainda tem alguém aí...? Não... Tem de haver alguém. Tomada então por uma força monstruosa que não era minha, apoei minhas pernas no chão e gritei, levantando-me triunfante, fazendo a escuridão recuar, assustada. O pânico havia se dissipado completamente, e somente o frio, agora sutil, permanecia. Senti um forte gosto metálico na boca. Passei a mão nos lábios, e vi que estavam feridos e sangravam. Parei, então, para olhar o quarto em que me encontrava, apesar de não haver muito para se ver. Fora a poltrona onde antes estava sentada e a penteadeira velha encostada na parede à frente desta, o pequeno quarto tinha apenas uma janela e uma porta. Tentei a porta. Trancada. Sentei novamente na poltrona e abri a única gaveta da penteadeira. Encontrei uma caneta, um bilhete e um revólver. Um calafrio percorreu minha espinha. Indaguei receosa durante alguns minutos quem poderia tê-los posto ali e com que propósito. Cuidadosamente para que não disparasse, abri o revólver e vi que continha apenas uma bala. Botei-a de volta e deixei o revólver na cabeceira logo em frente ao espelho, enquanto voltava minha atenção para o bilhete. Em letras garranchadas que ocupavam metade da folha, consegui ler:
Hoje, todos os seus desejos se tornarão realidade

Logo embaixo, dois riscos. Peguei a caneta e comecei a escrever:
Hoje, todos os seus desejos se tornarão realidade
Ao comparar o que eu havia escrito com o que anteriormente estava ali, não pude evitar deixar cair a caneta numa mistura de surpresa, alívio e receio. Sabia, então, que encontraria alguém. Instintivamente, peguei o revólver da penteadeira e abri a janela. O vento frio soprou. Assim que saí por inteira do quarto, por um segundo procurei, esperançosa, o sinal de algum rosto conhecido. Estava escurecendo, e a rua estava deserta. Experimentei então uma sensação de profundo pesar, embora soubesse de antemão que não havia ninguém esperando por mim. Perguntei-me por alguns instantes que caminho deveria tomar, quando me dei conta de que não sabia onde queria ir. Decidi então andar seguindo um velho muro de pedra, pois ele tinha alguns desenhos de criança feitos com giz-de-cera. O vento batia diretamente contra o meu rosto, jogando meus cabelos para o alto e gelando meu nariz e minhas orelhas. O metal do revólver roubava o pouco de calor que restava em minha mão direita. Após alguns minutos de caminhada sem sucesso, vi ao longe algo sendo levado pelo vento na minha direção. Botei a mão acima dos olhos para protegê-los do vento e forcei-os, no intuito de identificar o objeto. Ele se aproximava rapidamente, e antes que pudesse ter a certeza de que era um papel, grudou contra meu peito pela força do vento. Estava escrito "Verão em Cancun, 2008". Do outro lado, uma foto de um bonito rapaz abraçado a uma garota. Notei algo de familiar nela, e observei-a por alguns instantes. De repente, percebi. A garota... sou eu? E esse garoto... me conhece? Não, essa não sou eu. Os olhos dela são castanhos. Mas, mas... Tinha de ser eu, tinha de ser! Mas não era. Então, se não era eu, o que significava isso? Havia alguém... igual a mim? Eu sou, então... desnecessária? O pânico novamente tomou o controle, muito mais poderoso de que da última vez, e eu sentia meu coração acelerado bombear sangue alucinadamente para todo o meu corpo. Meus pulmões trabalhavam excessivamente, e eu me sentia com falta de ar. Minha garganta seca causava-me dor ao engolir minha saliva misturada ao sangue que saía de meus lábios inferiores. Não pude evitar os pensamentos que forçavam passagem em minha mente enquanto meu braço direito se movia lentamente em direção à minha cabeça, até encostar em minha orelha o metal frio de um calibre .38. Milhares de vozes se misturavam em minha mente, causando uma dor de cabeça excruciante e tornando cada vez mais e mais sedutor o simples movimento de um dedo. Pensamentos, lembranças,invenções e desejoseamoresemedoseinsegurançaseloucuraseódiosepaixõesemortesesangue.
Chega
Abri os olhos, interrompendo em uma fração de segundo a torrente de pensamentos. Meu braço direito mantinha apontado o revólver para minha cabeça. O pus então em minhas mãos e pensei por alguns instantes. Decidida e sem hesitar, arremessei-o por cima do muro. Encontrarei alguém. Alguém que vai me amar pelo que sou...