- Eu nem sei se eu quero ir...
Pausa.
Me ocorreu, durante alguns instantes, que sua voz provavelmente tinha saído mais fraca do que ela desejava.
- O quê? ...Pai? Espera, não tô te ouvindo...
Ela pôs no viva voz
- Não, minha filha, viaja sim! Vai se divertir, passear...
Nesse momento, ela virou um pouco o rosto, enxugando as lágrimas que escorriam nas suas bochechas e manchavam a maquiagem que ela havia demorado horas pra fazer. Eu sabia que isso ia eventualmente acontecer. Ela nunca foi muito boa de segurar esse tipo de coisa, mas mesmo assim... que vergonha.
- Tá bom, pai, então eu vou sim...
- O que foi, minha filha? Tá chorando?
- Tô...
- Mas por quê?
Então ela começou, com aquela voz chorosa e quase suplicante, de quem pede uma solução inexistente para um problema.
- Ai, porque é uma viagem que eu não sei se vai ser boa, sabe? E eu tô preocupada...
- Você precisa se distrair, filha, vai sim. Não se preocupa comigo. Eu vou continuar aqui. Não vou a lugar nenhum...
- Tá bom, pai. Então amanhã eu passo aí, tá? Me espera?
- Espero sim.
- Então tá... boa noite, pai. Beijo.
- Beijo.
E ela continuou a chorar. Com a quantidade de álcool que ela havia bebido, eu arriscaria dizer que as lágrimas dela eram feitas de puro álcool. E se eu já não me sentia seguro dela estar dirigindo antes, agora que estava também chorando, eu contava os segundos para quando seríamos atingidos por um caminhão ou algo do tipo. No entanto, os segundos também se aproximavam da hora do segundo round. E o segundo round sempre era o pior de todos, porque era sempre comigo. Cruzei os braços, numa tentativa desesperada de impedir qualquer forma de contato ou comunicação. Porém...
- Tá tudo bem? Disse ela.
- Sim. E com você?
- Bom...
E o meu pesadelo começa em 3...2...1...
- Tava pensando, sabe, nesse negócio da viagem. Eu não sei se vai ser boa, entende? Queria viajar com um monte de preocupações a menos, mas o meu pai, como você já sabe, tá internado, e eu discuti com o Otávio por causa... por causa de que mesmo? Já nem sei mais...
- ...
- O que você acha?
- De quê?
- Do que aconteceu na casa do seu pai.
- Não sei, não presto atenção na conversa alheia (nota-se que eu disse "conversa", mas meu intento era dizer "lavação de roupa suja").
- Mas aquilo não foi particular, foi público.
- Independente disso.
Pausa.
- E o que te incomodou o dia inteiro? Continuava ela.
- Eu estive incomodado de manhã e agora, sem relação um momento com o outro.
- Por que de manhã?
- Dormi menos do que desejava.
- E por que agora?
- Porque você está chorando.
Percebi que falei besteira. Acabaria fazendo-a chorar mais, e eu sairia ainda mais prejudicado. No entanto, contrariando todas as minhas expectativas, ela recompôs-se.
- Isso te incomoda?
- Profundamente
Nova pausa.
- Por quê?
- Você está se envergonhando.
- Como assim?
- Você, uma mulher adulta, está chorando na minha frente.
- Eu não tenho vergonha de chorar na frente do meu filho. De chorar na frente de alguém que eu amo.
Não sei o que eu disse nesse momento, mas acredito que tenha sido algo sobre aprender a lidar com certas coisas nas horas apropriadas.
- Você acha tão insuportável que eu esteja chorando aqui e agora?
- Sim. Acho insuportável o modo como você me obriga a ser cúmplice do seu sofrimento. Insuportável como parece tentar me privar do direito de imperturbabilidade com assuntos que, particularmente, não me interessam.
- Te faz tão mal me ver sofrendo?
- Isso é pura inconveniência.
- Inconveniência? Essa é uma palavra formal, que não se aplica à relação mãe e filho.
Dei uma risada de desdém, alta o suficiente para que ela ouvisse, mas baixa o suficiente para parecer não intencional.
Longa pausa.
- Eu fico realmente surpresa com a sua indiferença, sabe. Você me fala algumas coisas, e eu me agarro à esperança de que você não saiba realmente do que tá falando... mas aí você me diz que sabe, e eu acho isso tão surreal...
- ...
Então o carro entrou na garagem e ela abriu a porta, enquanto falava algo sobre como as coisas não continuariam as mesmas, e de como parecia que eu achava tudo uma 'merda igual'.
- Tchau, ela disse.
- Tchau, até amanhã.
...