sexta-feira, 6 de junho de 2014

O Metrô Rio agradece a preferência

"Era um péssimo dia para suicídio. Eu disse isso pra você."

...

Já havia passado das cinco horas quando resolvi finalmente desligar o computador e abrir o portão da frente em direção à rua. Meu ônibus não demorou a passar, mas quando cheguei ao ponto final, a claridade já evanescia e as luzes da rua começavam a se acender uma por uma, lançando grandes sombras de árvores pela calçada. Desci pela estação do metrô e mais uma vez testemunhei a estupidez das pessoas que simplesmente não sabem em qual das máquinas devem apresentar sua passagem e atravancam a vida alheia, fazendo filas em lugares aos quais não precisam ir. Eu já estava suficientemente atrasado, então caminhei depressa pelo corredor e desci as escadas em direção ao local de embarque, onde aguardei por alguns minutos o trem da minha linha. Quando as portas se abriram, me deparei novamente com deficiências de intelecto que se amontoam e atravancam a porta dificultando a entrada dos outros quando o centro do vagão está perfeitamente habitável e espaçoso. Me esgueiro entre sacos de banha até chegar lá e me aprumo numa posição minimamente confortável para se passar meia hora sem muito movimento. Viajava tranquilo, perdido em pensamentos que agora não são mais regados à música por conta do falecimento inoportuno de meu aparelho de celular. A faladeira típica de um transporte público não me incomodava ou mesmo me chamava a atenção, até que de repente, quando o trem parou na estação, um som se sobressaiu e uma voz feminina me fez arquear a sobrancelha e torcer a cabeça numa posição curiosa, como se estivesse finalmente interessado em alguma coisa. Foi um som abafado, como um grito contido que faz alguém cobrir a boca com a mão, em choque. Conforme eu procurava o motivo do ruído, o trem começou a andar e a mulher continuava a olhar pela janela, provavelmente ainda com a imagem do que a havia assustado impressa no pensamento. "Você viu também?", perguntou uma outra mulher à primeira, e elas começaram a trocar palavras. Um burburinho agitado relacionado a truques da luz, reflexo, incredulidade e "achei que isso só acontecia em filmes" começou no vagão, até que ficou claro que o que as duas haviam visto tinha realmente acontecido e uma pessoa tinha, de fato, se jogado nos trilhos do trem.
Não era exatamente uma notícia que possibilitasse uma postura de indiferença, nem mesmo para mim, então depois do trem estacionar na estação seguinte com as portas abertas, articulei rapidamente alguns pensamentos e passei a observar os arredores. O que posso dizer é que, realmente, nessas horas é muito difícil manter a minha adquirida postura otimista. Ouvia-se de tudo:

"-A pessoa tem que estar muito endividada mesmo pra se jogar nos trilhos"
"-Ai gente, eu achei que isso só acontecia em filme!"
"-Nossa, mas não tinha outra hora pra se matar não? Tinha que ser agora? Atrasou a viagem de todo mundo..."
"-Mas isso é suicídio né? Ele se matou, acho que é suicídio então"
"-Meu jesus, que horror, isso não é de deus não..."

Sim, é a esse nível que chega a mediocridade e a incompreensão alheia. Algumas delas, incapazes de aceitar o fardo de receber uma notícia como essa, começaram a especular que o indivíduo em questão teria sido empurrado ao invés de ter pulado por conta própria. Isso até que poderia fazer bastante sentido, caso a plataforma não estivesse completamente vazia naquele momento. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego, disse um poeta uma vez. Mas não é meu foco tentar relatar o transtorno pragmático que isso causou a mim e a outros, me fazendo saltar na estação Uruguaiana e me obrigando a pegar um ônibus que jamais havia visto. Embora o dia tenha transcorrido sem futuras complicações, eu não conseguiria seguir sem refletir sobre o acontecimento. O que poderia tornar a existência tão insuportável, que demandasse o término imediato de si mesmo e do seu lugar no universo? É uma confissão de que a vida não vale a pena ser vivida? Uma escolha que declara implicitamente que viver é "demais"? É um ato realizado em um estado de agitação, ou é calculado e premeditado? A pessoa em questão haveria fugido da vida antes mesmo de tê-la vivido? Estaria ela tentando escapar do sofrimento?
Independente das respostas a estas questões ou da incapacidade de algumas pessoas de conceber a ideia, o fato é que suicídio choca. Choca porque denuncia o fracasso do investimento social feito no indivíduo, que com um único ato, apresenta a ineficácia dos grupos sociais em abrangê-lo e contemplar suas dores. Desmascara e desmancha a farsa paradisíaca de uma vida em que todos são felizes simplesmente porque podem comprar o que quiserem. Choca, e deve chocar mesmo. Porque quando alguém se mata, há uma história que realmente precisava ser ouvida. As pessoas devem se sentir incomodadas, porque há lições a serem aprendidas que elas teimam em dizer que não são necessárias.
Parece que qualquer coisa que se pudesse dizer sobre o sofrimento da pessoa seria tão pouco... Mas afinal, será que nossas aspirações materialistas conseguem comprar para nós um sentido de viver?