quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A Canção do Cisne

De onde estava eu conseguia ouvir, vindo do lado de fora, o som das rodas passando sobre poças d'água remanescentes da chuva de horas atrás. Uma névoa estranha e fora de época dava à vizinhança um aspecto isolado e frio de cidades montanhosas, e a falta de energia elétrica em alguns dos postes fazia com que a iluminação da rua fosse inconstante e ligeiramente macabra. As batidas de um relógio de pêndulo ressoavam pela sala, junto das cores e imagens de um aparelho televisor mudo e já sem espectadores. Deitada e sem mover um músculo estava eu, olhando vagamente as formas e desenhos criados pela tinta levemente descascada do teto. De pernas cruzadas sobre o braço do sofá e com minhas mechas ruivas gentilmente repousando sobre as almofadas, eu estava à espera. Um gato preto roçava sua cabeça em minha mão que pendia para fora do sofá, enquanto meus lábios vermelhos, tingidos como cerejas na primavera, continuavam a suspirar. Esse tempo todo, suspirando por ele.
Eu ainda tinha vívida a memória da noite em que nos conhecemos, quando os ares quentes de Dezembro e o perfume adocicado de incenso de canela permeavam o local. Os sons de muitas conversas paralelas e de música de ambiente em volume baixo ecoavam quando te vi pela primeira vez, costas apoiadas na parede e um cigarro entre os dedos enquanto se engajava em uma conversa com um pequeno grupo ao seu redor. Rapidamente percebi que você era o centro das atenções conforme todos abaixavam a voz para te ouvir falar, os olhos voltados fixamente na sua direção enquanto seu copo de vidro cintilava a cada gesticulação. Seus braços se moviam de maneira discreta, mas relaxada, e os ombros largos se destacavam com a postura ereta. Seu cabelo longo e escuro era atado por uma fita em um pequeno coque acima da nuca, mas alguns fios próximos à testa estavam soltos e deslizavam suavemente pela região das têmporas. Sua barba volumosa e ligeiramente aparada junto do vestuário engomado de camiseta abotoada se apresentavam aos olhos como um equilíbrio harmonioso e delicado entre desleixo e vaidade. Sem dúvida alguma, um homem deslumbrante, com uma aparência digna do rei do baile de alguma garota adolescente, mas naquele momento - e lembrar-me disso agora me trazia um sorriso bobo aos lábios - senti-me eu mesma tola como uma garotinha, desejosa de ser de alguém com quem nunca trocara uma palavra sequer. No entanto, o que mais me fascinava era a maneira com que você sorria, um sorriso mais satisfeito do que propriamente divertido. Na realidade, quem te visse sorrindo jamais teria certeza do que se passava na sua cabeça, ainda que você não hesitasse em responder que não era nada digno de ser compartilhado. Era esse pensamento, a ideia de que você pensava coisas que não eram pra ser ditas em público, o mistério da sua vida interior, que me deu a certeza do seu magnetismo inevitável, selvagem como uma flor que desabrocha inesperada e em todo o seu esplendor.
Naquela outra noite, quando o cheiro de tabaco era lentamente varrido janela afora pelas hélices de um ventilador de teto e as flores de Camellia - pequenas como uma moeda e com inúmeros ciclos de pétalas rosadas - enfeitavam a cabeceira da cama em um vaso, eu já estava aninhada em seus braços, nós dois nus como viemos ao mundo. Mesmo que quisesse, eu não conseguiria encontrar palavras para explicar por que havia sido maravilhoso. Não tinha certeza se era a maneira com que seu braço se enterrou por trás das minhas costas e me segurou com firmeza quando eu estava por baixo, ou o modo com que você agora apoiava sua mão deliberadamente em minha bunda enquanto conversávamos sobre um outro assunto qualquer. Me senti preenchida e inflamada quando você olhou direto nos meus olhos esbanjando aquele sorriso nos lábios e me chamou 'safada'. Senti que estávamos tão em sincronia que o que quer que você me chamasse naquele momento eu teria gostado. Era raro que me sentisse assim, ainda mais raro que acontecesse frequentemente em um curto período de tempo. Mas você me fez sentir, e até hoje foi só você.
Me lembro de quando as estrelas tremeluziam no céu noturno como pequenos diamantes em veludo negro enquanto refletores tingiam o ambiente com tons de turquesa, lilás e amarelo. As paredes do grande salão, decoradas do palco até o bar com pôsteres de artistas como Johnny Cash e David Bowie, e bandas como The Who e The Clash, faziam um recorte mais ou menos preciso do tipo de pessoa que estaria em um espaço como esse: tipos como eu e você, esses Bonnie e Clyde anacrônicos vivendo perdidos no novo milênio. Nossos amigos, embalados pela música de uma banda de pouco talento que se apresentava ao vivo, cambaleavam abraçados na pista de dança unidos pelo álcool em suas veias e eu não conseguia pensar em nada mais divertido do que estar ao seu lado pra rir daquilo tudo com você. Era impagável sentir que era eu quem chamava a sua atenção apesar de todas as coisas atraentes à nossa volta: sentir que era pelos meus cabelos ruivos que você deslizava as mãos ao puxar devagar meu pescoço. Sentir sua fragrância cítrica de hortelã, limão e almíscar tão próxima do meu perfume de jasmin, sua outra mão agarrada ao meu braço, seu olhar compenetrado e afundando no meu até minha língua se perder na sua. Tudo isso era o céu pra mim. Fazia com que eu me sentisse a sua garota, sua parceira no crime. E eu não trocaria isso por nada no mundo.
Ondulações azul ciano se espalhavam pela piscina límpida e cristalina enquanto minha cabeça se erguia, lentamente rompendo a uniformidade do espelho d'água. O sol ardia quente no céu de início da tarde enquanto eu subia os degraus da escada, acoplada à borda da piscina por hastes de metal, e calçava os chinelos para que o chão de pedra não queimasse meus pés. Caminhei torcendo suavemente meu cabelo até o lugar em que você estava, onde o piso já mudava de pedra para grama e uma barraca de lona mantinha você e seu Alexander fora do sol. Puxei uma das cadeiras de maneira que pudesse sair da sombra ao mesmo tempo em que me mantinha perto de você, e passei alguns minutos observando seu olhar que se voltava na direção das hortênsias do jardim, mas via muito além delas. A luz do sol era capturada pelo corpo d'água, que refletia seu brilho e multiplicava seu esplendor, fazendo com que toda a piscina parecesse cintilar enquanto os pássaros saltitavam pelas árvores próximas e as gaivotas voavam na imensidão do céu azul. A brisa balançava a grama verde enquanto tímidos botões de flor se arriscavam a mostrar suas primeiras pétalas, mas nenhuma dessas maravilhas era capaz de chamar a sua atenção, perdida em reflexões muito além daquele momento. Eu não podia evitar te sentir distante quando você sorria triste pro horizonte daquela maneira, e me esforçava muito pra que você se sentisse à vontade para se dividir comigo. Tudo que eu queria era voltar para as mensagens de boa noite e pro otimismo de pensar que um dia você desvendaria alguns dos seus mistérios para mim, mas depois de tanto tempo, eu já começava a ter medo do futuro.
Antes que eu me desse conta, as memórias se esvaíram e ninguém mais dançava à noite ou cantarolava baixinho um pro outro a letra das músicas. Só havia eu, deitada no sofá com blues e um homem na cabeça. Meu querido vivia em tons de azul e frieza, bebia Bacardi e dirigia Chevy Malibu, e mesmo que eu tentasse tantas vezes mostrar a ele que a vida é o que fazemos dela, seu mundo era impenetrável demais. E então foram-se embora com apenas uma onda um verão em Paraty e uma viagem nômade pelo Deserto do Colorado, todos esses planos que nunca chegamos a viver, mas que me faziam feliz pela simples ideia de planejar juntos algo para nós dois. Eu nunca pude afastar a sensação de que no fundo ele era solitário e se lamentava, pedindo ajuda em uma voz que ninguém mais ouvia, mas mesmo sabendo de tudo isso, ainda assim não consegui fazer nada por ele. Foi um belo e triste relacionamento nas obras de arte das nossas vidas, e eu só posso desejar, do fundo do meu coração, que um dia ele não esteja mais triste e que não se esqueça do amor que nasceu com ele, porque eu jamais esquecerei. Não posso evitar desejar que nos encontremos de novo no futuro, e até lá vou manter firme a certeza de que nesse belo e triste mundo em que vivemos, ainda há espaço para o amor.


Dedicado à Isabela e Diana, que dividiram comigo algumas de suas experiências como mulheres e ajudaram a enriquecer esse texto.
Obrigado.