domingo, 27 de setembro de 2015

Meh (1,2,3,4,5,6,7,8,9,10,11,12) [13]


Capítulo 1: O fim

Viscoso, escuro, quase cor de vinho, escorrendo pela rua asfaltada como serpentes vermelhas até deslizar por um bueiro e desaparecer. Não ouvia nada além de um som estridente e constante no fundo da minha cabeça até que alguém se chocou contra mim e meu corpo pesou, caindo no chão com a resistência de um pacote vazio. Um número cada vez maior de pessoas ia e vinha. Algumas delas falavam comigo e agarravam meus braços, mas não conseguia entender o que diziam, minha boca aberta em um "o" estupefato e abobalhado. De repente me senti molhado e olhei ao redor antes de perceber que chovia. Olhei para a rua de novo e vi que a chuva não levava embora a substância pegajosa, presa à rua como cola. Meu corpo se movia sem minha ordem e começou a engatinhar ao longo do caminhão até a figura estatelada no chão. Meu estômago se embrulhou e eu vomitei. Fedia a fumaça, perfume e vômito, mas principalmente a sangue.
              - Olá!
              - Hãn? Eu olhei pra cima e respondi, acordando de um sonho.
              - Oi! Você é novo aqui, não é? 
Minha vista se adaptou à claridade e identifiquei uma garota em pé de camiseta amarela com mangas e shorts brancos. Sua pele era queimada de sol e as maçãs proeminentes do seu rosto ficavam ainda mais em evidência conforme ela sorria de orelha a orelha. Seus grandes e castanhos olhos amendoados olhavam com a curiosidade infantil de quem observa um brinquedo novo. Seu rabo de cavalo castanho-escuro pendulava à frente de seu corpo conforme ela se inclinava na minha direção, nivelando sua altura com a minha. Hesitei um pouco antes de responder que sim, era meu primeiro ano.
            - É, eu já sabia - ela disse, recebendo satisfeita sua confirmação.
Então por que perguntou?
        - Vou te contar algo que você já deve saber, mas... você não vai conseguir fazer muitos amigos se ficar sentado olhando fixo para o nada durante o recesso. Mas
 relaxa, não precisa ficar triste. E sabe por quê? Porque eu vou ser sua primeira amiga aqui! Meu nome é Clara, e você é o...?
Hesitei novamente. A situação toda me parecia surreal. Não fazia ideia de quem era essa pessoa e do que poderia se passar na cabeça dela para que não só pensasse em fazer mas resolvesse de fato tirar um aluno desconhecido qualquer dos seus pensamentos por nenhum outro motivo além de "olá, vamos ser amigos?". Percebi que ela realmente esperava uma resposta pela forma que inclinava a cabeça e piscava os olhos com antecipação.
         - Tiago. Meu nome é Tiago.
         - E qual é o assunto preferido do Tiago quando ele fica sentado olhando para o nada?
Minha resposta foi uma visível e genuína cara de perplexidade
         - Perguntei no que você estava pensando.
         - Em nada. Só lembrando de coisa antiga.
 

Capítulo 2: O Coelho Branco

Entardecia quando o sino tocou. Centenas de adolescentes se movimentavam em direção às saídas; uns iam de encontro a pais que os esperavam com as portas de seus carros já abertas, enquanto outros se reuniam em grupos e iam a pé. Me encostei em um canto para esperar a quantidade de gente diminuir e alguns minutos depois me pus a caminhar. Peguei o caminho em direção à praia, ainda que a distância fosse mais longa, pois gostava de olhar o mar. A brisa do mar tornava o caminho fresco e tranquilo, balançando calmamente as copas das árvores, que por sua vez lançavam suas sombras em meio à calçada. Ao longo de minha caminhada, pude ver mais uma vez o contraste entre as paisagens: de um lado, um labirinto de prédios erguia-se em uma corrida em direção ao infinito, pintados pelo cinza monótono do concreto, e gente era vista nas janelas. De outro, o sol se punha atrás do mar tingindo o céu ao redor de vermelho e a água plácida refletia a luz do sol, duplicando sua beleza e transformando a paisagem em um espetáculo de luzes e cores. Na areia, alguns poucos ainda se davam conta da verdadeira maravilha que é um pôr-do-sol, enquanto outros iam embora sem olhar para trás. Observando essa gente nas janelas e indo embora da praia, de repente comecei a me sentir irritado com todos eles. Essa gente era alheia a um pôr-do-sol, alheia à qualquer um dos significados reais de qualquer coisa. Gente com o rosto transbordando de ignorância e superficialidade, daquelas que andam vagarosamente na minha frente ocupando toda a calçada ou que entopem as filas dos supermercados. É gente que esbarra sem pedir desculpas, gente que não chega perto de ser uma pessoa.
Meu peito começava a esquentar de raiva quando um olhar passeou pelo meu rosto e passou, em um rápido lance de vista. Um choque me paralisando os movimentos enquanto a dona do olhar andava com passos leves e rápidos até virar a esquina e sumir. Estremeci. Meu corpo me dizia algo que eu tinha todos os motivos pra saber que não era. Comecei a correr depressa e virei na mesma esquina, olhando para os lados aflito, com o coração disparando e a certeza de que não podia perdê-la de vista. A visão começava a turvar quando de longe identifiquei sua silhueta. Não havia tempo a perder. Em um surto de frenesi, comecei a correr, e me senti ficando tonto. Não sei exatamente por quanto tempo corri; a cada passo que dava, parecia-me que o caminho se distorcia e estendia, vibrava, tentando ficar mais longo. Era como se tivesse uma diferença enorme entre os limites físicos das coisas e o espaço que elas ocupavam. Só sei que quando parei, num estalo, estava logo atrás dela.
O universo parecia  ter mudado completamente ao meu redor. Já estava de noite, e a rua descuidada e com latas de lixo caídas na frente dos prédios estava agora deserta. A escuridão, rompida apenas por algumas lâmpadas tremeluzentes do alto dos postes, parecia comprimir o meu corpo em todas as direções, provocando uma sensação claustrofóbica e uma leve falta de ar. O frio, até então despercebido por conta da correria, começava a dar sinais de presença, gelando meu nariz e fazendo fumaça sair de minha boca ofegante à cada respiração. Enquanto isso, ela ainda andava à minha frente, calma e alheia a tudo. O momento em que dei o primeiro passo, porém, foi quando me bateu como uma pancada a dúvida que já estava ali. O que diabos estou fazendo aqui? Não sabia se estava mais apavorado com a possibilidade de ser ou de não ser. Após instantes inacabáveis parado ali, minhas dúvidas drenavam o ímpeto que me sobrava e pensei que seria uma perda de qualquer jeito. Por que você não me deixa em paz? Você não pode só me deixar ir, e parar de aparecer para mim? Por que me torturar desse jeito? Pensei tantas vezes nessa chance, de tê-la só para uma conversa, de dizer tudo o que ruminava há anos e tudo o que me tirava o sono, de levá-la pelos corredores de mim até os confins e exibir os monumentos feitos dos cadáveres dos meus sonhos quebrados, as estátuas erguidas em honra a meus arrependimentos, e diante da possibilidade de fazer tudo isso, me senti confuso, desorientado e insuficiente. Fraco. Foi quando virei-me de costas e comecei a me distanciar. Nada mais me resta aqui.

Capítulo 3:(Des)Concerto

- Julia?
Toquei em seu ombro e ela se virou. Seus lábios eram vermelhos como uma maçã. Seus cabelos, lisos e cor de ébano, tinham as pontas pintadas de loiro e escorriam até os ombros. No seu pescoço, um colar com um detalhado pingente de borboleta. Usava um colete aberto com três botões dourados do lado esquerdo e por baixo  uma blusa branca de mangas simples e sem estampas. Um short jeans pelo qual atravessava um cinto deixava à mostra suas coxas bonitas e um par de botas pretas de cano alto com curtos saltos grossos cobriam seus tornozelos e a deixavam da mesma altura que eu: ela parecia estar vestida como quem se arrumou para encontrar alguém. No entanto, o que mais chamava a atenção eram seus olhos; prateados, de tão claros. Me senti compelido a encará-los e tive uma sensação esquisita. Era como se alguém estivesse tateando por dentro do meu crânio. A pupila era um círculo negro que palpitava em um mar de prata.
- Eu pareço com a sua namorada? Respondeu a garota, me observando de cima a baixo.
- D-desculpe. É minha ex-namorada...
- Não me diga. Não se comportou? Os homens sempre fazem essas besteiras.
- Houve um acidente, respondi, enquanto tentava me lembrar. De repente a memória do dia me pareceu borrada.
Fez-se silêncio.
- E então...?
- É que é muito impressionante - disse eu, ainda atônito - você podia ser a gêmea dela! O seu rosto, a sua voz... Só o seu cabelo e os seus olhos são diferentes! Enquanto eu falava, ela se encostou na parede de um prédio e cruzou os braços, deixando à mostra suas unhas pintadas de vermelho-vivo.
- O meu nome é Juliana. Eu não pareço fantasma algum, ou pareço? Eu sou de verdade, veja. 
Ela então puxou meu braço e segurou minha mão entre as suas, me fazendo sentir o calor emanando de suas palmas. Após alguns instantes, ela acariciou de leve meus dedos.
- V-você realmente não é a Julia, eu disse ao puxar minha mão bruscamente. Ela me encarou por alguns segundos e disse novamente que seu nome era Juliana.
- Mas... - ela pausou a fala e começou a andar ao meu redor lentamente. Cada passo que dava era leve, deslizando pelo chão - eu pareço com essa Julia? E... você a amava? Ou mal podia esperar pra se livrar dela?
- Não seja ridícula! Falei severamente olhando em seus olhos.
- Quanta raiva! É um assunto sensível? Eu estava só brincando...
Isso me deixou irritado. 
- Esquece, desculpa qualquer coisa.
"Como assim?", ela perguntou com as mãos na cintura, ofendida.
- Não estávamos nos conhecendo? Agora você vai embora porque não sou sua ex morta?
- ...O quê?
- Passa na praia mais vezes. Eu costumo estar por aqui a essa hora.
Ela então se despediu e foi embora. Fiquei observando enquanto ela andava pela rua cada vez mais distante, até desaparecer noite adentro.

Capítulo 4: Portas trancadas

A chave rodava lentamente na fechadura da grande porta de madeira, antes de ser guardada novamente no bolso do jeans junto do chaveiro com a torre de Cancun. Andava vagarosamente pelo corredor escuro, tateando à procura de algo que me guiasse os passos. Após esbarrar no interruptor, todas as luzes da enorme sala se acenderam em saudação à minha chegada. O som dos passos pesados e arrastados batendo contra a madeira polida ecoava pela grande mansão, antes de serem substituídos por sons abafados de quem anda por cima de um tapete. Recebendo-me, uma enorme escada enfeitada por uma passadeira de veludo negro seguia em direção aos andares superiores. Ignorei-a e entrei por uma das inúmeras portas que se projetavam naquela sala.
Encontrei as luzes já acesas e a grande mesa de jantar já posta. Era um móvel luxuoso e ocupava uma grande parte da sala. Sentei-me à cabeceira numa cadeira ricamente detalhada em madeira, onde o assento era também de veludo negro. Fileira após fileira de castiçais de bronze estendiam-se de uma ponta à outra da mesa em intervalos calculadamente iguais. Bandejas após bandejas de prata onde depositavam-se os mais variados pratos ocupavam grande parte do espaço disponível na toalha branca. Talheres, tigelas, xícaras e bules de porcelana dividiam a atenção com a multidão de garrafas de bebidas importadas de marcas das quais nunca ouvira falar. Reluzentes taças de cristal refletiam a luz do esplêndido lustre no teto. Diretamente à minha frente e atrás da cadeira da cabeceira oposta, mais dois castiçais descansavam na prateleira acima do buraco da lareira. No meio deles, um quadro chamava novamente a minha atenção, embora já o tivesse visto inúmeras vezes no passado. Apenas se representavam a cabeça e os ombros das duas figuras que se distinguiam do fundo preto. Um homem velho encarava por detrás de óculos de meia-lua com um olhar severo e impassível. O tempo não havia tido piedade com seu rosto. Usava um terno de tom escuro. Sua mão esquerda por onde corriam saltadas veias azuis estava apoiada no ombro de uma mulher, que usava um longo vestido preto e um colar de pérolas que dava muitas voltas ao redor de seu colo e pescoço. Seus longos e ondulados cabelos ruivos escorriam até os seios. Seus olhos heterocromáticos verde-esmeralda e azul piscina ajudavam a moldar um semblante apático e inexpressivo. A moldura oval era dourada e ricamente adornada. Desviei o olhar para a comida em meu prato e fitei-a durante alguns instantes, antes de dar um longo suspiro e começar a comer. O único som era o tique-taque do relógio de pêndulo, repetido e ritmado. Incessante. Terminei o jantar e levantei-me. Observei por alguns momentos os dois outros pratos que ainda encontravam-se na mesa, intactos como os haviam posto, antes de sair pela porta que entrei.
Subi pela escada e entrei pelas portas duplas logo em frente. As luzes acenderam-se sozinhas. A decoração era rica, porém vetusta. Nas paredes estavam pendurados diversos troféus, misturados com quadros de estilo gótico e sombrio. A cama era ocupada por um mar de almofadas e travesseiros diferentes, combinando com a colcha vermelho-vinho. Uma enorme janela por onde era possível se ver a entrada da mansão estava tapada por longas cortinas de veludo. Caminhei pelo carpete cinza até o banheiro, abandonando os tênis, as meias, a camisa, o casaco e o jeans que agora se amontoavam no chão de mármore frio. Parei um instante e me aproximei para observar melhor a estranha figura que olhava em minha direção. Era um garoto de uns 15 anos de idade. Uma franja castanho-escura e arrepiada escondia um pedaço da testa em uma curva leve para a direita que acompanhava todo o cabelo antes de chegar aos olhos verdes. Olhos alheios à beleza do mundo e de si. Ombros largos e um corpo magro não muito forte. Tiago, murmurei algumas vezes enquanto encarava o rosto no espelho. Desviei o rosto do espelho, e encarei minha lâmina de barbear descansando em um copo com a escova de dentes. Balancei a cabeça rapidamente, me livrando de um devaneio. Hoje não. Tomei um banho, apaguei as luzes e morri no colchão.

Capítulo 5: Estrada pra lugar nenhum

Outro passo. Outro dia. Mais uma desconsiderada página era virada no velho livro que caía aos pedaços. Só um dedo ferido e sangrando de tanto bater na mesma tecla, esperando que algum dia ela funcionasse. Esperando que alguém ouvisse. Outro passo. Outro dia. Só a sombra de uma cadeira, se deslocando de um lado para o outro repetidamente, sem ser movida. Só se moveria no dia que fosse desmontada e destruída, eles diziam. Outro passo. Outro dia. No qual já não era possível sentir o calor do fogo. No qual todas aquelas comidas refinadas tinham todas o mesmo gosto vazio de nada. No qual todos aqueles cortes auto-inflingidos não provocavam qualquer sensação de dor ou remorso. Dias nos quais estar sob o sol ou sob o gelo não fazia diferença. Dias nos quais o sofrimento alheio não mais comovia. Onde o tédio já não surpreendia. Onde ficar só na vontade já não doía. Onde era só mais um porco num chiqueiro, comendo e dormindo, esperando o dia em que finalmente seria sacrificado. Nem mesmo promessas ainda atraíam. Só uma longa estrada de terra, rachada pela alarmante ausência de água, seguia indefinidamente além do horizonte, sem sinais de haver um dia existido vida ali. Sem toca para oferecer refúgio, sem lago para oferecer alívio. Sem árvore para oferecer abrigo. Só o dia, a estrada, eu, e o abismo. Aquele que se fez presente desde o início da caminhada, cuja profundidade debochava de mim. Outro passo, onde os pés descalços se feriam e sangravam na briga com o barro e com as pedras pontiagudas do chão. Outro dia, onde era só mais um dia, comandado pela inércia do estado de espírito. Comandado pela falta de comando. Outro dia onde só havia o dia, eu, a estrada, e o abismo. Dias onde não havia dia. Outro dia onde só havia eu, a estrada, e o abismo. Dias onde não haviam caminhos. Outro dia onde só havia eu, e o abismo. Outro dia onde só havia eu, e o abismo. Eu, e o abismo. Eu, e o abismo. Eu, e o abismo. O abismo.
Fim

- Isso ficou muito profundo, Tiago. Mas a proposta era uma redação sobre o seu cotidiano!

Capítulo 6: O castelo de cartas

Mais uma vez tocava o sinal estridente, anunciando o término das aulas. A multidão de pessoas saía esbaforida pela porta da sala enquanto me levantava calmo e me dirigia à saída. Entrei na rua pela direita e segui, passando direto pela rua que ia em direção à praia e evitando-a. Andava pela calçada no ritmo cansado de sempre, com as mãos no bolso e a cabeça baixa, absorto em meus pensamentos e observando a paisagem ao meu redor. O vento soprava suave, balançando as folhas das copas das árvores que enfeitavam aquela rua, fazendo um som de ondas batendo contra uma costa. As nuvens cinzentas cobriam silenciosamente cada recanto do céu, anunciando a chuva que os jornais da manhã haviam previsto. Por algum motivo, aquela paisagem mórbida me dava uma sensação de pertencimento, por mais estranho que isso parecesse. Como se ao mesmo tempo em que era acinzentada e baça, era também onde eu poderia mergulhar em minha mente sem ser incomodado.
- Ei!
Um garoto se levantava da mesa de uma lanchonete e andava em minha direção. De súbito tomei consciência da situação: pessoas que reconheci de minha sala de aula estavam sentados em uma mesa próxima à saída.
- Ei! E aí, cara?
- Oi.
- É Tiago, não é? Você já provou o açaí daqui? O pessoal tá dizendo que é muito bom.
- ...Não vai dar, tenho compromisso pra hoje. 
O garoto murmurou algo como "fica pra próxima" antes de caminhar de volta para seu barulhento grupo de amigos. Que baboseira, pensei, enquanto voltava a andar. Estavam todos rindo e se divertindo, brindando a alguma coisa. Observei se formarem os sorrisos dessas pessoas que eu via todos os dias, embora não soubesse absolutamente nada sobre elas. A cena agora passava diante de meus olhos como em câmera lenta: eu estava aqui, fora dessa baboseira toda e só consegui pensar em como essa baboseira deve ser tão aconchegante e acolhedora.
Experimentei um profundo pesar misturado a lembranças agridoces de tempos um dia melhores. Não há infelicidade maior do que relembrar, sozinho, a época em que juntos fomos felizes. Pensei então no que havia se tornado minha vida, um eterno acúmulo de idas, partidas e ausências. Exausto de abraçar o vazio, um escravo do desespero e da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas lutas e de inventar uma outra e nova vida.
Algumas vezes havia tentado, reunido toda minha determinação e pensado pra mim mesmo que a partir de agora seria diferente e, nesses momentos, me enchia de idéias e de bons propósitos. Mas quando me dava por mim, me via quieto, sentado em meu canto, olhando o tempo passar. Será que isso era mesmo vida? Será que só isso bastava? O que aconteceu com todos aqueles sonhos, tão certos de uma vida melhor? Havia tecido uma rede deles, e agora via um por um dos fios desmanchar e destecer até tudo se tornar um grande vazio. Me restam agora só as lembranças da época em que eu vivia. 
Foi quando me ocorreu.
-A praia!
Me virei e saí andando rápido, agitado. O vento se chocava contra meu rosto e meu nariz; minha respiração ofegava e me faltava ar nos pulmões. Meu coração batia depressa e tive uma sensação de déjà vu. Estava indo mais rápido do que achava e a cada passo eu jogava meu corpo para frente, caindo com todo o peso em cima do meu pé. Achei que ia me desequilibrar ou tropeçar, mas não conseguia parar de correr e empurrava as pessoas na minha frente. Quando dei por mim, estava na rua da praia, no meio da rua. Olhei para o lado e vi luzes brancas desenfreadas em minha direção. Estou indo, pensei. E desliguei.

Capítulo 7: Paraíso sombrio

Flutuava e um perfume familiar pairava no ar. Por um instante tive o impulso de abrir os olhos, mas notei que demandaria um esforço que não parecia necessário. Sentia-me diferente, leve, sem preocupações ou dores. Me sentia genuinamente bem; será que eu morri? Não me parecia ser tão ruim. Mesmo assim, algo me incomodava. Fui morto por um motivo qualquer numa rua qualquer, antes de minha vida ter sequer começado e de eu ter encontrado alguma tranquilidade. Algo ainda doía, uma dor latente persistia, e parecia me arrastar para algum lugar estranho e assustador.
Percebi-me deitado em algo duro, e minha coluna doía extraordinariamente. Tive a impressão de que algo pesado havia passado por cima de mim e quebrado todos os meus ossos. Quando enfim abri os olhos, me deparei com dois olhos brilhantes me observando minuciosamente.
Notei que estava deitado em uma cama e ela sentada em um pequeno sofá ao lado. Tentei me levantar, mas uma pontada de dor me fez parar, mordendo os lábios e fechando os olhos com força.
- Vai com calma, Tiago. Você acaba de ser atropelado.
- C-como assim?
- Foi o que eu disse. Você saiu correndo para atravessar a rua e não conseguiu ver um carro enorme na sua direção.
Juliana me encarava e me deixava desconfortável. Quis olhar ao redor e percebi que estava em um quarto de hospital. Estava um pouco escuro, mas pelo que consegui enxergar as paredes e o teto eram pintados de branco, assim como uma porta que dava para um banheiro. O pequeno sofá onde ela havia se sentado era de um tom de azul desbotado, e um armário simples ocupava uma parte de uma das paredes. Achei o quarto terrivelmente frio, e notei que fumaça saía de minha boca. Olhei para a janela e vi que estava aberta, exibindo a noite sombria que enquanto eu dormia havia deposto a claridade. Pedi que minha companhia fechasse a janela e, dando de ombros como se o frio não a incomodasse, ela se levantou e foi até a janela fazendo ecoar pela sala o barulho de seus sapatos contra o chão. Pude ouvir a crescente sinfonia que os pingos de chuva começavam a fazer batendo contra a janela de vidro.
- Eu andava pela rua quando vi uma multidão reunida. Me disseram que tinha sido um atropelamento e vi que era você quem estava estirado no chão. Quando a ambulância chegou, eu disse que era sua namorada e me deixaram vir.
Eu não respondi, mas meu rosto denunciou minha irritação e ela percebeu.
- Como você queria que eu me apresentasse? Eu não conseguiria ter ido na ambulância de outra forma e ninguém mais teria vindo. Você ia acordar aqui confuso sozinho, é isso mesmo que você queria? Tem noção do favor que eu te fiz?
Silêncio. 
.
.
.
- M-Mas você não é minha namorada.
-Verdade. Sua namorada está morta.
Juliana me encarou de novo não pude deixar de reparar que o rosto delas era idêntico. Se me esforçasse um pouco, conseguia ver nitidamente Julia com raiva de mim por alguma coisa. Sem vontade de continuar a conversar, me virei para deitar novamente quando senti uma dor lancinante em minhas costas e soltei um gemido.
- Ah, Tiago! Deixa eu te ajudar.
Ela prontamente se aproximou e com cuidado me ajudou a recostar na cama.
- Quanto tempo você acha que eu vou ter que ficar aqui?
- Os médicos disseram que são só alguns dias. Mas não importa - nesse momento, ela esticou sua mão para alcançar a minha, me provocando uma sensação de intimidade invadida - eu estou aqui pra você, Tiago. O tempo que você precisar de mim.

Capítulo 8:

Diário de Hospital

9 de Junho

Não sabia há quanto tempo estava consciente, mas sabia que havia acordado. Tinha essa certeza pois sentia desagradavelmente que não havia dormido o bastante. Desejei por alguns instantes permanecer em semi-consciência onde não poderia sentir nada além do fato de não estar morto, mas contra a minha vontade meus sentidos foram gradualmente retornando. Senti cheiro de desinfetante e limpeza artificial, e senti cada articulação do meu corpo doer ao se mover. Depois, o amargor dos remédios que haviam me enfiado garganta abaixo e ouvi a chuva e o vento batendo na janela. Por fim abri os olhos e vi as rachaduras do teto branco que iam das extremidades até o centro, onde uma lâmpada presa por uma dupla de fios expostos desafiava a lei da gravidade. Rolando na cama de um lado para o outro, frustrado, olhei pela janela e uma neblina densa havia se instalado. Coberto de dores e de desconforto, só conseguia pensar no quanto isso tudo é injusto...

10 de Junho

O médico veio hoje. Ele me fez engolir uma pílula estranha que ardeu cada centímetro de minha garganta, e disse que se ela não aliviasse a minha dor, ele teria de recorrer a medicamentos mais fortes. Eu não quero medicamentos mais fortes. A pílula que tomei já me deixou com enjoos e tonteiras o dia inteiro. Se eu só me sinto melhor quando estou drogado, que vida é essa? Ao mesmo tempo não consigo deixar de pensar que as angústias da vida real são terrivelmente fortes a ponto de nos vermos obrigados a recorrer a outras realidades que nos auxiliem na enfrentamento da nossa. Sei que devo estar soando patético e fraco, mas nem todo mundo consegue ser forte. Será que é tão condenável escolher fugir ao invés de lutar? Algumas pessoas provavelmente diriam que sim, mas nenhum deles teve de passar pelo que passei. Sinto que isto é um pensamento egoísta, mas por mais que tente, não consigo evitar o modo como eu me sinto. É muito difícil continuar vivendo desse jeito...

11 de Junho

Por mais que eu saiba que é loucura, no meu íntimo eu ainda tenho a esperança de que alguma hora você vai entrar por aquela porta balançando seus lindos cabelos escuros, vai vir correndo me abraçar e me dizer o quanto estava preocupada comigo e o quanto sentiu minha falta. Que vai reabrir a janela do meu coração e fazer crescer flores numa terra barrenta. Por causa disso eu observo esperançosamente a porta o dia inteiro, mas ela nunca se abre. Então eu continuo esperando, preso no casulo da minha dor e solidão. Sentindo-me fraco e desamparado, aguardando eternamente alguém que nunca vem. Eu queria tanto poder mudar o modo como as coisas acabaram, mas não consigo. Por isso fico aqui, pintando na cabeça um mosaico das nossas lembranças; da nossa temporada em Cancun. Lembranças de tempos um dia melhores, os anos maravilhosos que tive com você. Mesmo que a nossa vida juntos tenha terminado desse jeito, eu não trocaria o tempo que passamos por nada nesse mundo; se na época que te conheci alguém do futuro aparecesse para me contar todas as felicidades que eu iria viver com você e me dissesse que o custo delas seria o que estou passando agora, eu não teria dúvidas de que faria tudo de novo.
Não posso pedir que você se lembre de mim onde quer que esteja agora, mas não consigo suportar a idéia de você me esquecer. Você me deu tanta coisa, e eu não fui capaz de retribuir nada.
Você me fez feliz...

Capítulo 9: Realidade


Acordei com um chacoalhar brusco. Ainda tonto e com a cabeça latejando, percebi que a cama na qual estava deitado era empurrada por um longo corredor mal-iluminado. Lâmpadas velhas de brilho pálido eram as únicas fontes de luz e já davam sinais de que provavelmente não durariam muito tempo. A frágil claridade não permitia que eu enxergasse bem os arredores; só conseguia distinguir a silhueta do médico que me acompanhava. Sentia-me diferente. A atípica escuridão perturbava-me, e também não ouvia os barulhos característicos de um hospital. As trevas e o silêncio são ambientes prósperos para a aglomeração dos horrores que habitam tanto o mundo quanto a mente, e uma sensação de  desgraça iminente pairava no ar. Tentei afastar esses pensamentos: estava num hospital, e se não deveria me sentir seguro aqui não me sentiria em lugar algum.
Embora o médico não proferisse palavra alguma, os solavancos da cama me impediam de deslizar para a inconsciência, e aparecia devagar uma sensação esquisita nas minhas vísceras que me mantinha desperto. Eu estava alerta, meu corpo em prontidão. Aproveitei a percepção aguçada da tensão para tentar ouvir ou ver alguma coisa, qualquer coisa que provasse que a ameaça era coisa da minha cabeça. Me concentrei no silêncio por alguns minutos. A cama continuava a deslizar pela escuridão, e do além invadiu meu pensamento a ideia de que aquela era a descida pro inferno. 
Do fundo do nada, começou a roçar na minha consciência de forma vaga e fraca. Após alguns minutos, consegui identificar o que eram. Mais minutos depois, não consegui tirá-los da cabeça. Ruídos estridentes de metal se arrastando contra metal, barulhos de correntes e portas batendo, ventiladores industriais girando. O som terrível de um grito agonizante ecoou por todo o hospital até vibrar nos meus tímpanos e gelar a minha espinha. A angústia parasita em meu interior se alastrou depressa, se infiltrando como uma doença virulenta e se alimentando do meu desespero. Tentei me mover, mas meus membros dormentes pesavam toneladas. Abri meus olhos e vi a imundície do teto e das paredes, que tinham sinais pesados de abandono. As lâmpadas eram mais velhas do que pensei, e suas luzes tremeluziam. Enquanto era empurrado, vi fileiras de portas de metal ferruginosas e, através de uma abertura no metal, pude distinguir os médicos cometendo os mais vis e desumanos atos contra os internos. Sufocamentos, fogueiras humanas, desmembramentos e outras torturas inimagináveis passavam diante de meus olhos. Tentei gritar mas não fui capaz de emitir um mísero som. Macas e camas manchadas de sangue se espalhavam pelo corredor, e embrulhos de plástico atado por cordas se moviam freneticamente tentando se libertar. Virei a cabeça e vomitei, meus fluídos jorrando na maca, no meu rosto e cabelos. O cheiro pestilento ameaçava sair mais um, mas tive medo de me afogar e segurei. O ar em meus pulmões esvaziara e meu coração batia violento e descontrolado. Minha boca e garganta estavam ressequidas e suor encharcava minhas roupas e cama. Todo o corredor estava corrompido por sujeira, sangue e ferrugem, e era como se a própria realidade estivesse contaminada.
Subitamente, o médico que me empurrava parou e começou a andar para longe; ouvi seus sapatos se chocarem contra o chão gradeado por um tempo até o eco ser engolido completamente pela escuridão. À deriva naquele mundo macabro, senti uma presença nefasta se aproximando de mim, e tive certeza de que era pior do que um médico. A mesma presença me espreitou das sombras e me manteve desperto minutos atrás. Sabia que tinha de me mover, e depressa. O torpor e a inércia eram agora vencidos pelo medo e pela adrenalina, e em um surto de força levantei-me da cama e me pus a correr. O chão de metal fervia e senti brotarem bolhas nos meu pés; a cada passo vômito respingava das minhas mechas e um vapor quente vindo de tubos no teto aumentava o calor. Não podia parar de correr, a coisa me alcançariaVi ao final do corredor uma porta e numa mistura de pânico e determinação fui em sua direção o mais rápido que pude. A cabeça latejava e minhas pernas mal sustentavam meu corpo, mas cheguei triunfante ao meu destino. Abrindo-a esbaforido fui atacado por um ruído que perfurou meu crânio e me colocou de joelhos com as mãos no ouvido. Senti minha consciência evanescer. Momentos antes de apagar o ruído tinha se tornado uma buzina de carro.

Abri os olhos. Olhei ao redor, aflito, procurando sinais de que a realidade havia revertido ao normal. O quarto estava exatamente do jeito que estivera durante os últimos dias, exceto por um único detalhe: havia um vaso de flores na cabeceira ao lado da cama. Intrigado por sua origem, perguntei à enfermeira prestes e sair do quarto quem o havia deixado.
- Foi uma garota bonita quem deixou. Passou aqui mais cedo, mas você estava dormindo.
- Ela disse quem era?
Parou por alguns instantes, pensativa, e respondeu.
- Disse, mas não consigo me lembrar. Disse também que passaria aqui outro dia.

                                                Capítulo 10: Clara


O que se pode fazer quando cada centímetro do seu corpo dói? Quando se sente reprimido pelos seus limites físicos? Para mim, a imaginação sempre foi um meio de escapar dos confinamentos impostos pelo meu corpo frágil. A criatividade me dava refúgio nos momentos em que me sentia atado à dura realidade; criava um outro mundo na minha cabeça onde podia ser livre, longe de toda aquela tristeza. Meus pensamentos e sonhos sempre foram mais atraentes que a vida cotidiana, e não consigo compreender o que pode haver de tão bom nela para que aqueles ao meu redor insistam em me arrastar dolorosamente para o mundo deles. 
Ainda assim, meu desejo de enterrar-me em meus pensamentos não é mais tão reconfortante e passou a me angustiar. No fundo, não consigo abandonar a certeza de que o mundo deveria ter algo a mais, de que a vida deveria ser algo além do que é, e de que a realidade não podia se limitar a isso. A única época em que senti que as coisas valiam realmente a pena foi quando estive com Julia. Ela fazia com que eu me sentisse elétrico e ansioso, como se a vida fosse uma oportunidade incrível e tivéssemos medo de não conseguir aproveitar tudo que tinha de interessante ao nosso redor. Ela fazia com que eu tivesse vontade de viver a realidade, porque finalmente havia se tornado melhor que meus sonhos, e me convencera da noção ferrenha de que a vida feliz não era um simples mito e, mesmo que fosse, de que era melhor morrer tentando atingir esse objetivo inalcançável a me afundar na resignação estática de que o inferno são os outros. Não me lembro de ter deixado de agradecê-la por isso nem um momento sequer; meu passado sem ela era desolado e persistente demais para que eu achasse banal o milagre do seu companheirismo.
Então ela se foi, e minhas esperanças junto dela. A chuva daquele dia continua caindo em mim até hoje. Quem agora me ajudaria a ver o quão bela a vida poderia ser? O que ou quem mais eu poderia vir a desejar com tanto afinco? Me restaram tão poucos motivos pra continuar tentando! Tinha um mundo de lembranças maravilhosas que agora partiam meu coração, e nenhum sentimento se compara ao lamento mudo de um coração partido.
Subitamente minhas reflexões foram interrompidas por batidas na porta. Fechei os olhos e me deitei como quem dorme, mas ninguém entrou no quarto e quando a terceira ou quarta tentativa vibrou, não tive escolha a não ser gritar para que a pessoa entrasse antes que o ruído incomodasse mais alguém. A porta se abriu e somente o rosto de minha visitante brotou no portal. Ela espiou averiguando se o território era seguro e, presumivelmente satisfeita, entrou por completo e fechou a porta atrás de si. A garota me deu bom dia e sorriu conforme se aproximava de meu leito, mas o modo como me fitava parecia apreensivo. Comecei a achar que meu rosto estava sujo em algum lugar e tentei limpá-lo disfarçadamente. Obviamente, não era para ser.
- Er, o que você tá fazendo?
- Nada de mais.
Achei que eu soubesse disfarçar melhor. Ela parou de pé ao lado de minha cama e , após alguns instantes silenciosos, começou a olhar ao redor como quem procura algo sobre o que falar. Nunca tive muita paciência para quem acha que deve procurar alguma besteira para dizer só para que não haja silêncio. Não acho que estou dando um uso produtivo ao meu tempo preenchendo-o com conversa jogada fora, e ela me parecia o tipo de pessoa que nunca entenderia os motivos que levam alguém a assistir um filme que não tenha um final feliz, ou a comprar uma tela que não seja bonita. Se ela percebia que eu não a olhava de um jeito convidativo, não demonstrou, pois continuava a sorrir e isso me pareceu uma atitude tola.
- Fique à vontade. Dizendo isso, indiquei com o dedo o sofá azul-desbotado
- Ah, obrigada!
A identidade dela permanecia um mistério e eu não havia tido uma boa impressão, mas ela me pareceu suficientemente respeitosa com o meu espaço, então não havia motivos para não ser educado. Ela se sentou, mas a apreensão no olhar permanecia e, depois de mais algum tempo, rompeu o silêncio.
- Como está se sentindo?
Em um trabalho ímpar de dedução, pensei que se ela não havia se dado ao trabalho de se apresentar eu já a 'conhecia' de algum outro lugar. Enquanto respondia, revirei meus pensamentos em busca do provável ambiente.
- Já estive melhor.
- É, eu imagino... que chato ir pro hospital justo na sexta-feira, né? Deve ter arruinado seus planos para o final de semana.
- Não tem problema. Não é como se ele estivesse lotado.
Silêncio. Já podia ver que essa conversa não daria em muita coisa e, se ela for inteligente o suficiente, vai perceber o mesmo. O silêncio progrediu por alguns minutos até que ela simplesmente pediu licença, foi até a janela, abriu totalmente as cortinas, tirou o vaso de flores da cabeceira e o colocou no peitoril agora iluminado pela luz do dia.
- Assim elas ficam debaixo do sol, completou. E pôs-se a observar sua obra de decoração como quem admira um trabalho bem-feito. Esse gesto me intrigou, mas outra coisa me veio antes.
- Como você sabe que meu acidente foi na sexta?
- Ah, sabe como são essas coisas, tá todo mundo comentando lá no colégio. Aliás, gostou das flores? São girassóis e lírios da floricultura onde eu trabalho. Achei que podia alegrar o ambiente.
A delicadeza e a simplicidade do gesto me provocaram uma onda de empatia pela menina. Ela havia se dado ao trabalho de dedicar dois dias do seu tempo para me visitar e me trazer flores quando eu não havia julgado importante nem mesmo me lembrar do seu nome. Seu olhar de apreensão de repente me pareceu preocupação genuína, assim como sua consideração pela minha situação. Me senti emocionado e um pouco arrependido; com que direito eu a  julgara tão mal minutos atrás?
- S-sim, elas realmente... alegram o ambiente. Muito obrigado.
- Imagina, não foi nada!
Agradada, ela deu um sorriso que tornou toda sua fisionomia mais leve e voltou a se sentar, visivelmente mais à vontade. Apesar do ambiente menos desconfortável, permanecemos durante mais alguns minutos em um silêncio familiar no qual ambas as partes estão interessadas em começar uma conversa, mas igualmente receosas a respeito da direção que ela deve tomar. Ela havia sido gentil, então decidi me esforçar um pouco.
- Então... você trabalha numa floricultura?
- Sim, mas é só meio período. Fica bem perto do colégio, aliás. Você podia dar uma passada lá um dia desses, se estiver sem nada pra fazer depois da aula.
Ela realmente sorri bastante, pensei eu.
- É claro, vamos ter que esperar você melhorar, antes. Tem previsão para ser liberado?
- De acordo com os médicos, o meu estado requer mais alguns dias de "hospitalização supervisionada".
- E há quanto tempo te disseram isso?
- Bem... já faz alguns dias.
- Você está preocupado?
Por um momento, pensei em dizer que fazia pouca ou nenhuma diferença estar hospitalizado ou não, pois meus dias seriam igualmente monótonos e cinzas, ou que em todo caso a dor física seria passageira. Mas ainda comovido pela atenção da menina, não quis assustá-la com morbidez-realista desnecessária. Ao invés disso, disse em meio a risos e em tom de gozação, que com a dor que estava sentindo, piorar de vez seria quase um alívio. Ela deu uma risada.
- É bom ver que a "hospitalização supervisionada" não prejudicou seu bom humor!
...Bom humor? Já ouvi dizerem que sou muitas coisas, mas confesso que bem-humorado é a primeira vez.
- Aposto que você e meu namorado seriam bons amigos, ela prosseguiu.
- Namorado?
- Ele estuda com a gente. Não me admira que você não o tenha notado, ele é meio tímido e não gosta de grupos grandes.
- E por isso acha que seríamos amigos? Perguntei, com uma sobrancelha arqueada.
- Na verdade é porque ele também tem um senso de humor irônico, meio parecido com o seu.
Você mal me conhece e já faz observações sobre o que acha que é meu senso de humor irônico? Fitamos um ao outro por algum tempo, até que ela olhou em seu relógio de pulso e se levantou do sofá em um pulo. Não consegui distinguir o que ela disse depois, um emaranhado de declarações sobre o quão atrasada estava, sobre sua falta de atenção e pedidos de desculpas por ter de sair tão de repente. Antes que ela atravessasse a porta do corredor me lembrei de perguntar:
-Ei, ahm, com tudo que aconteceu desde aquele dia, eu acabei esquecendo seu nome. Desculpe.
- Ah, não se preocupe com isso. Meu nome é Clara, ela respondeu, antes de dar seu último sorriso e sair apressada do quarto.

                                                Capítulo 11: Reflexos

-Você já teve um sonho tão real que poderia jurar ser verdadeiro? E se...
Parei então por alguns momentos, tanto pra procurar uma maneira compreensível de verbalizar os pensamentos quanto para dar à minha interlocutora uma chance de resposta. Como ela permanecia muda, prossegui.
-E se você não conseguisse acordar desse sonho? Como conseguiria distinguir a realidade do delírio?
Ela fitou o esmalte das unhas por mais alguns instantes, virou a cabeça em minha direção e respondeu, olhando diretamente em meus olhos.
-Do que diabos você está falando, Tiago?
...

Era a última noite que eu teria que passar no hospital, e já não era sem tempo. Embora não houvesse nada em particular que sentisse falta de fazer fora de lá, me negar a liberdade de poder circular por lugares que não queria ir era um tanto sufocante. Acordei hoje com a luz do sol em meu rosto, entrando pela cortina que ficara aberta no dia anterior para iluminar as flores. Apesar da característica dor nas cortas de se dormir em uma desconfortável cama de hospital e do meu mau humor por ter sido acordado antes de minha hora habitual, quando virei a cabeça em direção às plantas e me lembrei da visita em que as ganhei, senti-me diferente de alguma forma. Me lembrava daquele dia no intervalo das aulas quando falei com ela pela primeira vez. Ela disse que "seria minha amiga" antes de saber qualquer coisa sobre mim, e embora tenha todos os motivos para considerá-la tola e ingênua, conversar com ela pela segunda vez me transmitiu uma sensação estranha e familiar ao mesmo tempo. Era como se uma minúscula chama tivesse se acendido brevemente dentro de mim.

Mas ainda tenho em mim vívida a memória de minhas tentativas de relações anteriores. Lembro-me bem demais como é se sentir como um barco navegando à esmo noite adentro, cujo contato com outros barcos se limitava a sinais luminosos evanescentes, até que cada um seguisse seu próprio caminho e desaparecesse em sua escuridão pessoal. Por que os seres humanos se sentem tão solitários? Milhões de pessoas por aí, todas elas almejando intimidade, companhia, compreensão, e ainda sim, isolando a si mesmas em seus casulos. Qual o sentido disso tudo? Quando penso sobre isso, me sinto irritado com um mundo frio que nos ensina que tristezas e inseguranças não devem ser compartilhadas por serem sinal de fraqueza, ou que incentiva as pessoas a temerem e julgarem as estranhezas alheias ao invés de acolhê-las. Raiva de um mundo com aspirações materialistas que não dá espaço para as necessidades da alma e acima de tudo raiva de milhões de pessoas que sem questionar nada disso caminham em direção à própria infelicidade regada à relações superficiais e satisfações vazias. A empatia tem tanto potencial para ser o maior dos tesouros humanos, pois acho que, verdadeiramente, só o que queremos é compreender e sermos compreendidos. Ninguém  se lembra de esticar a mão, e eu fico preso demais entre minha carência de laços e minha desconfiança das pessoas.

-Não é nada. Só lembrei de um sonho estranho que tive há algumas noites.

Era dia quando cochilei em meio a rabiscos e pensamentos em meu caderno de rascunhos, mas noite quando despertei. Como a noite ela havia chegado, silenciosa e despercebida. Fiquei apreensivo quando a vi ali, mas supus que como da primeira vez ela havia encontrado uma maneira de chegar a meu quarto sem ser notada.

- Que tipo de sonho? Perguntou ela, virando a cabeça numa posição curiosa, como se tivesse enfim encontrado algo mais interessante que suas unhas.
- Era como se eu estivesse aqui no hospital, mas ele fosse completamente diferente. Estava coberto de sujeira, sangue e ferrugem, e a cada passo que eu dava, algo me perseguia. Não tinha ninguém pra ajudar. Foi um verdadeiro pesadelo.
- Ah é? Não me diga. - disse ela, com seu característico tom debochado - Você já pensou em procurar um tipo especial de ajuda? 
- Como assim?
- Ora, quem sou eu para sugerir qualquer coisa - e com um esgar maldoso, completou - só porque você continua apaixonado por um cadáver não quer dizer que você seja desequilibrado.
Desviei o olhar. Por que ela tinha que me tratar desse jeito? O que ela ganha fazendo isso? Era pra isso que vem pra cá, pra me acusar de ser maluco e zombar de mim?
Um silêncio constrangedor tomou conta do quarto, e mesmo que eu tivesse algo para responder, não queria continuar a conversa. Durante alguns minutos fiquei com a cabeça abaixada olhando para minhas mãos, e o único som que se podia ouvir era o vento frio uivando pela janela.
- Ei, Tiago.
- Sim?
- Eu quero te perguntar uma coisa.
Sua voz havia perdido sua acidez e agora tinha um tom mais tenro e preocupado.
- A Julia era o amor da sua vida, não era? E se você nunca encontrar alguém como ela? O que você pretende fazer?
- Eu... eu não tenho certeza. Agora que você falou, acho que nunca pensei muito sobre isso.
Ela se limitou a me dar um sorriso triste como resposta antes de desviar novamente o rosto, pensativa. O que estaria acontecendo? Para onde foi a garota que cruelmente me alfinetou instantes atrás? A Juliana diante de mim parecia uma pessoa diferente com suas maçãs do rosto apoiadas na palma da mão e fitando com um olhar vago e sonhador a imensidão da noite que adentrava pela janela.
- Seria uma pena se você não conseguisse repetir aquela viagem para Cancun.
Gelei. Meu coração acelerou e suor escorreu de minha testa. Uma coceira nervosa me surgiu no braço e quando dei por mim havia aberto com as unhas uma ferida que sangrava. Senti a pressão do meu sangue circulando pelos braços e pernas numa mistura de torpor e alerta. Queria perguntar, mas não consegui articular pensamentos ou fala. Comecei a olhar aflito para os lados, enquanto ela me olhava e sorria sentada no sofá. Paralisado, acompanhei com os olhos quando ela se levantou e ergueu o vaso de flores com as mãos.

- Que bonitas essas plantas - disse ela ao arrancar uma flor do arranjo e a fazer girar entre seu polegar e indicador - quem as trouxe?
Precisei de alguns minutos para calar minha mente em azáfama e conseguir processar a pergunta. Mais tempo ainda demorei para balbuciar uma resposta.
- Foi uma, foi uma... c-conhecida minha.
- Que conhecida é essa? A flor despetalada agora caía no chão.
Sentia-me exposto e frágil, desvendado e indefeso como uma criancinha assustada encurralada em um canto escuro, à mercê do que quisessem fazer com ela.
- Espero que você não me deixe de lado para ficar com ela. Eu ficaria muito chateada se isso acontecesse.
Breu. Não me lembro do que aconteceu depois. Acordei desnorteado e sozinho já no dia seguinte; Juliana havia partido. O médico a quem perguntei concluiu que eu havia sofrido um desmaio, e disse que era comum em situações de muito estresse.
Cancun foi o lugar para onde Julia e eu resolvemos viajar juntos em 2008, só nós dois. A viagem foi tão boa que prometemos um ao outro voltar lá um dia. Ao longo do dia, não encontrei o vaso sob a janela. Fui descobri-lo depois em um canto no chão do banheiro e vi que o arranjo estava murcho.

Capítulo 12: Degelo

Sentindo a seca e fria brisa do mar enquanto ouço o ruído das folhas se arrastando na calçada ao serem sopradas pelo vento, eu sonho. Fecho meus olhos até enxergar na umbra seus braços abertos, prontos para me apertar até que eu perca o ar, e sua boca para me amar com carícias e palavras doces. Eu sonho por amor desde o dia em que o meu não pôde mais existir na realidade, e vejo minha felicidade em tons de sépia, com as granulações de um filme antigo exibido em um projetor. Porém, todo raiar do dia vem e me desperta do sono, debochando de mim pelas horas que terei de viver até que possa sonhar de novo.
O raiar desse dia em particular me disse que meu breve período de estase social havia cessado e que era hora de voltar para casa, mas que eu deveria voltar à "hospitalização supervisionada" caso algum outro problema surgisse. Uma afirmação demasiadamente vaga que parecia sugerir que eu não me atirasse irresponsavelmente no meio de uma rua movimentada para evitar transtornos. É claro que se o transtorno for a causa do meu ato, eu devo me manter com o meu para não gerá-lo nos outros.
- Ei, você!
Suspiro.
- Você é o Tiago?
Parei alguns instantes pra processar a probabilidade real dessa situação. Na calçada diante do hospital durante a tarde de um feriado um total estranho surge das profundezas e me chama pelo nome.
- Sou eu sim. Me desculpe, eu deveria me lembrar de você?
- Não me surpreende que não lembre, eu não chamo atenção na sala. Sou o Leonardo, namorado da Clara.
É esse o rapaz "tímido e de senso de humor irônico"? Ele fala de um jeito estranho.
- Ah! Bem, é um prazer, Leonardo... A Clara veio?
- Ela queria, mas o dia está cheio e ela não teve como sair mais cedo do trabalho.
- Então veio só você.
- Não podia perder esse tempo especial que estamos passando juntos.
O comentário extrapoladamente irônico feito com a feição na mais absoluta seriedade não deixava dúvidas. Soltei uma risada abafada e tive a sensação de encontrar um semelhante. Essa situação provavelmente parecia tão estranha pra ele, que foi enviado pela namorada pra encontrar com um estranho, quanto pra mim, que fui abordado por um desconhecido em uma situação para a qual a intimidade não preparou terreno. Ele recepcionou minha risada abafada com um ligeiro sorriso de canto de boca.
- Então... foi fácil me achar?
- Clara me disse pra achar um rapaz loiro e bonito que olha para o horizonte como quem não tem propósito na vida.
- A... Clara disse isso?
- O que você acha, Tiago? Ele perguntou enquanto arqueava uma sobrancelha, visivelmente se divertindo com o rumo da conversa. Ele parecia estar me provocando, tentando me deixar desconfortável de propósito para testar minhas reações, e eu me senti incaracteristicamente com vontade de devolver a provocação. Parecíamos dois lutadores em um ringue, se circundando e analisando um ao outro, tentando fazer afirmações que instigassem a conversa e a mantivessem em um equilíbrio delicado, beirando o desconforto verdadeiro mas com certo cuidado de ninguém se sentir realmente incomodado. Surpreende-me um pouco que ele e Clara namorem. O que um viu no outro?
- Eu acho... que você incluiu na descrição suas próprias observações.
- Mas qual parte foi ela e qual parte eu inventei? Fica a dúvida. Disse ele, enquanto sorria.
Continuamos caminhando enquanto a escuridão lentamente se deitava sobre a rua, e antes que eu percebesse, Leonardo havia me acompanhado até em casa. Depois de nos despedirmos, fiquei alguns minutos me surpreendendo com esse rapaz de escuros cabelos cacheados e feições severas, e com sua conversa de alguma maneira cômica e séria. Sua aparência simples de jeans e camiseta despertava bem pouco a curiosidade, embora talvez tenha sido essa característica - um certo vazio misterioso - que de repente tenha me parecido magnética.
Eu ficaria contente se fôssemos amigos.

Capítulo 13: Prisão


O ruído da porta de madeira ao se abrir fez com que todas as cabeças se voltassem para minha direção por um momento, antes de se direcionarem novamente para o que quer que estivessem olhando antes de minha chegada. Me esgueirei o mais silenciosamente que pude em busca de um assento vago, embora o tilintar dos zíperes de minha mochila chocando-se uns contra os outros acabasse por denunciar minha locomoção. Embora frequentemente questionasse a relevância dos conteúdos, nunca me senti inclinado a me atrasar para as aulas: a súbita atenção direcionada a mim quando eu enfim entrava era algo que eu procurava evitar.

O dia estava anormalmente quente, e apesar do sol ter secado a maior parte das poças d'água acumuladas no asfalto durante a semana outrora fria e chuvosa, eu havia decidido que pelo evitaria a fadiga e não me apressaria na caminhada hoje. Uma escolha que eu pagava agora, conforme buscava em meio a muitos rostos pseudo-conhecidos algum lugar vago que pudesse ocupar. A disposição das cadeiras era feita de maneira que se formavam três colunas ao longo da sala, duas delas próximas a paredes paralelas e a terceira no meio, sendo que cada coluna era composta por um par de cadeiras lado a lado. Chegar antes do horário significava que eu poderia me sentar em qualquer uma das duplas de assentos ao fundo sabendo que ninguém se daria ao trabalho de sentar-se ao meu lado. Hoje, no entanto, pelo menos um encosto de cada par já havia sido tomado, o que significava que durante as horas que me restavam aqui eu seria agraciado com a companhia e com o silêncio constrangedor de algum estranho. Já imaginava alguém puxando assuntos desinteressantes comigo e finalmente desistindo diante da minha apática indiferença.
De repente, no canto da sala um aceno sutil me chamou a atenção para uma cadeira vazia, e para a pessoa que acenava. Sentei-me lá em um misto de alívio e surpresa, subitamente com medo de tornar-me eu mesmo um estranho a puxar conversas desconfortáveis com alguém desinteressado.
- Bom dia.
- Bem-vindo - ele disse olhando em minha direção e exibindo um sorriso de canto de boca - Como vai o senhor popularidade?
Silêncio. Míseros e infinitos instante olhando um para o outro sem nada a dizer; ele sorria confiante enquanto eu buscava em meu repertório qualquer coisa para rebater. Tive a impressão de que ele havia feito uma piada, mas ou eu não havia entendido, ou ela não tinha graça. Independente do que fosse, o melhor seria sorrir brevemente para evitar constrangimentos. Eu nunca realmente compreendi certos tipos de convenção social, como a que exige que escondamos nosso incômodo ou surpresa em relação à certas coisas, e acabei me questionando se por acaso Leonardo alguma vez se sentira de maneira parecida.
- Acaba de perder minutos valiosos de conhecimento acadêmico - ele sussurrou ironicamente enquanto apoiava o cotovelo na mesa e a têmpora nas costas dos dedos - cuidado para não acabar em uma vida intelectual medíocre.
- Você acha isso aqui tão ruim? Eu achava e tinha uma ideia de que ele também, mas perguntei pra manter o assunto fluindo.
- Alguém uma vez me disse que precisamos da escola para não acabar na cadeia - ele respondeu dando de ombros - essa pessoa claramente nunca foi estudante ou saberia que se está trocando uma prisão pela outra. É uma loucura pensar que passamos mais de vinte anos sentados em cadeiras nos preparando para não termos tempo ou energia para viver a vida como gostaríamos.
Ele olhou para o meu rosto com as duas sobrancelhas levantadas, como quem me convidava a dar meu parecer. Senti meu coração acelerar um pouquinho diante da pressão da expectativa.
- Eu... tento não pensar desse jeito.
Ele sorriu e me pediu que revelasse a ele como fazê-lo. Ao resto da aula ficamos em silêncio. Cheguei à conclusão que o que me deixava satisfeito em conversar com Leonardo era a maneira com que seus olhos castanhos se fixavam em minha direção enquanto eu falava: me dava a sensação de que ele realmente prestava atenção no que eu dizia. Existe um certo fascínio sobre alguém que se interessa pelo discurso do outro quando a maioria das pessoas simplesmente espera sua vez de falar. Me sentia agradecido de poder conversar com ele.
Foi quando senti algo roçar em meu antebraço de maneira quase imperceptível. Perplexo, observei algum tipo de besouro gigante caminhar com suas muitas patas pela minha pele. Rapidamente dei-lhe um tapa que metade empurrou-o para longe, metade esmagou-o contra meu braço. Enojado com os viscosos resíduos coleopterológicos, deixei escapar uma exclamação abafada de desgosto. Me virei instintivamente na direção de Leonardo e vi sua única sobrancelha arqueada em uma expressão de indagação olhando para meu rosto, para meu braço e de volta para a face.
-E-eu preciso me lavar, disse a ele. Levantei depressa e fui em direção à porta, alheio aos olhares que pela segunda vez naquela aula me acompanhavam. No entanto, nos instantes em que desviei o olhar do braço para abrir a porta do banheiro até quando estiquei-o para dentro da pia, pareceu-me que boa parte dos líquidos já havia secado. Na realidade, quando passei a mão pelo local sob a água da torneira, a pele não parecia apresentar nenhuma textura diferente, como se nada estivesse havido ali em primeiro lugar. Quando retornei à sala de aulas, Leonardo já havia saído, e eu não voltei a vê-lo durante o dia inteiro.