terça-feira, 10 de maio de 2011
Meh [4]
A chave novamente desanimada rodava lenta e cansada na fechadura da grande porta de madeira, antes de ser guardada novamente no bolso do jeans junto do chaveiro de Cancun. Andava vagarosamente pelo corredor escuro, tateando à procura de algo que me guiasse os passos. E então, após esbarrar no interruptor, todas as luzes da enorme sala se acenderam, numa saudação à minha chegada. O som dos passos pesados e arrastados batendo contra a madeira polida ecoava pela grande mansão, antes de serem substituidos por sons mais baixos, como os de quem anda por cima de um tapete de seda. Recebendo-me, uma enorme escada enfeitada por uma passadeira de veludo negro seguia em direção aos andares superiores. Ignorei-a e entrei por uma das inúmeras portas que se projetavam naquela sala, todas entalhadas no mesmo padrão monótono. Encontrei as luzes já acesas e a grande mesa de jantar já posta. Era um móvel luxuoso e ocupava uma grande parte da sala. Sentei-me à cabeceira numa cadeira majestosa, onde o assento era também de veludo negro. Fileira após fileira de castiçais de bronze estendiam-se de uma ponta à outra da mesa em intervalos calculadamente iguais. Bandeijas após bandejas de prata onde depositavam-se os mais variados pratos ocupavam grande parte do espaço disponível na toalha branca. Talheres, tigelas, xícaras e bules de porcelana dividiam a atenção com a multidão de garrafas de bebidas importadas de marcas das quais nunca sequer ouvira falar. Reluzentes taças de cristal refletiam a luz do esplêndido lustre no teto. Diretamente à minha frente e atrás da cadeira da cabeceira oposta, mais dois castiçais descansavam na prateleira acima do buraco da lareira. No meio deles, um quadro chamava novamente a minha atenção, embora já o tivesse visto inúmeras vezes no passado. Apenas se representavam a cabeça e os ombros das duas figuras que se distinguiam do fundo preto. Um homem velho encarava por detrás de óculos de meia-lua com um olhar severo e impassível. O tempo havia deixado suas marcas em seu rosto. Usava um terno de tom escuro. Sua mão esquerda por onde corriam veias azuis estava apoiada no ombro de uma mulher. Ela usava um longo vestido preto e um colar de pérolas que dava muitas voltas ao redor de seu colo e pescoço. Seus longos e ondulados cabelos ruivos escorriam até os seios. Seu semblante era apático e inexpressivo. Os olhos heterocromáticos verde-esmeralda e azul piscina não transpareciam qualquer sombra de emoção. A moldura oval era dourada e ricamente adornada. Encima, em letras grandes, encontrava-se escrito "Ritz". Tsc. Desviei o olhar para a comida em meu prato e fitei-a durante alguns instantes, antes de dar um longo suspiro e começar a comer. O único som que permanecia era o tique-taque do relógio de pêndulo, repetido e ritmado. Terminei o jantar e levantei-me. Observei por alguns momentos os dois outros pratos que ainda encontravam-se na mesa, intactos como os haviam posto. Suspirei novamente, e saí pela porta que entrei. Subi pela escada e entrei pelas portas duplas logo em frente. As luzes acenderam-se sozinhas. A decoração era rica, porém vetusta. Nas paredes estavam pendurados diversos troféus, misturados com quadros de estilo gótico e sombrio. A cama era ocupada por um mar de almofadas e travesseiros diferentes, combinando com a colcha vermelho-vinho. Uma enorme janela por onde era possível se ver a entrada da mansão estava tapada por longas cortinas de veludo. Caminhei pelo carpete cinza até o banheiro. Os tênis, as meias, a camisa, o casaco e o jeans agora se amontoavam no chão de pedra frio. Parei um instante e me aproximei para observar melhor a estranha figura que olhava em minha direção. Era um garoto de uns 15 anos de idade. A franja loira e arrepiada escondia um pedaço da testa e virava levemente para a direita acompanhando todo o cabelo, antes de chegar aos olhos verdes. Olhos que pareciam alheios à própria beleza da mesma forma que evitavam contato com os outros. Ombros largos e um corpo magro não muito forte. Tiago, murmurei, antes de suspirar novamente. Desviei o rosto do espelho, e encarei o objeto responsável por proporcionar horas de indecisão durante todas as noites nos últimos meses. Era como se minutos de prazer estonteante pudessem ser proporcionados por um único movimento. A visão sedutora e atrativa do objeto hipnotizava e impossibilitava a organização dos pensamentos, e eles entupiam a cabeça até não aguentar mais. Céu, quadro, vento, nuvem, sol, chuva praia carro rua onibus motoristabueirosinalunhasvermelhosangueprateadordiochiadocosufocalorprédiofogoexplosão. Balancei a cabeça rapidamente, me livrando de um devaneio. Apaguei as luzes e caminhei até a cama, deixando sozinho o gilete encima da pia.
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A única parte ruim de ler esses textos e não saber quando virá o próximo...
ResponderExcluirSe eu não te conhecesse a minha vida inteira, acharia que está puxando meu saco
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